Coletânea Clarice na cabeceira: Jornalismo destaca o trabalho da escritora em jornais e revistas
Por Miguel Roberto
Carteira do Sindicato dos Jornalistas de Clarice Lispector (Imagem: Reprodução Agência de notícias CEUB)
Por ironia do destino, ou não, Clarice Lispector foi apresentada com o título de escritora e “uma das maiores ficcionistas da literatura brasileira” pelo Jornal do Brasil em 10 de dezembro de 1977, quando o periódico noticiou sua morte. Clarice morreu no dia anterior devido às complicações do câncer que enfrentava há anos. A ironia que menciono está na omissão do papel de jornalista, considerando que Clarice foi colunista e cronista no próprio Jornal do Brasil, além de ter trabalhado em diversos outros veículos de informação, assinando seus textos ora de forma explícita, ora sob a figura de pseudônimos.
Com intuito de lançar luz às contribuições jornalísticas da autora, a editora Rocco publicou em 2012 o livro Clarice na cabeceira: Jornalismo com organização e apresentações de Aparecida Maria Nunes, doutora em Literatura Brasileira pela USP, que fornece o contexto histórico, regado por alguns detalhes pessoais da vida de Clarice, a cada seção da obra. O livro expõe uma coletânea de textos escritos para jornais e revistas brasileiras entre as décadas de 1940 e 1970, e foi dividido nos tópicos: “Introdução: a menina de Tchetchelnik”; “Os primeiros textos na imprensa”; “As páginas femininas”; “As crônicas” e “As entrevistas”, em páginas que revelam o olhar aguçado e a fidelidade das impressões individuais da Clarice jornalista.
Capa de Clarice na cabeceira: Jornalismo (Imagem: Reprodução Rocco)
“O que me dá medo é o de chegar, por falta de assunto, à autorrevelação, mesmo à minha revelia” disse Lispector durante uma entrevista e demonstrou em outros momentos presentes na coletânea, sempre enfática ao contar seu temor de falar em excesso sobre si mesma em suas crônicas e textos no geral, talvez por modéstia ou timidez. Outra ironia de certa maneira, uma vez que em outro ponto do livro Clarice, questionada sobre como escrevia, ela chega a comparar o ato de escrever ao de respirar. Em mim, a metáfora da autora ressoa na ideia de que na escrita quem respira é o autor, um não existe sem o outro e é no mistério do processo de criação que mora o encanto de quem lê.
No entanto, a cautela para não se expor não impediu a jornalista de se colocar pontualmente nos textos, revelando o que a motivou a investigar o assunto em questão, o que a intrigou sobre a pessoa entrevistada, sua proximidade com ela e até mesmo como a considerava. Uma postura defendida em raras ocasiões e reservada para gêneros textuais específicos segundo os manuais de jornalismo, mas utilizada com maestria por uma repórter que enriquecia seus relatos à medida que levava ao público o contexto sobre o qual a informação foi construída, além do cenário dos fatos.
Emoção foi elemento garantido em suas produções, a própria, dos entrevistados, personagens ou daqueles mencionados. O interesse de Clarice pelo íntimo humano não é segredo, mas observá-la dosar toques de subjetividade em escrita factual e por vezes tão distante dos retratados me acendeu uma esperança de que há espaço para o que hoje chamamos de jornalismo humanizado. Em “Uma visita à casa dos expostos”, matéria para revista Vamos Ler!, de 1941, Lispector descreve com traços literários e empatia sua visita a um orfanato onde chegavam em média quatro ou cinco crianças por dia, passando pela estrutura do local, os ambientes e atividades destinadas para meninos e meninas, suas histórias e sentimentos:
“É quase impossível conversar com as mocinhas. Meninos e meninas da Casa dos Expostos, a um olhar, se recolhem, enrubescem e perdem a fala. Apesar de tudo, converso com Conceição. Tem quatorze anos, diz. Veio com quatro e está na casa há sete anos… Explico-lhe:
—Se você veio com quatro e está aqui há sete anos, tem onze anos somente…
Ela olha para mim desconfiada. ‘Tenho quatorze anos’, diz teimosa. Quer sair para trabalhar, enquanto é tempo. Tempo de quê? Enquanto tem mãe. Tem irmãos também, que moram com a mãe. Quando nasceu as coisas eram diferentes e ela foi asilada. ‘Onde mora sua mãe?’
—Há que tempo estou para perguntar…”
Clarice também se dedicou extensamente às questões da mulher, ficando à frente de várias colunas femininas ao longo de sua carreira, neste caso utilizou pseudônimos para assinar algumas. Algo que também não diminuiu a pessoalidade com que buscava informar e aconselhar suas leitoras, fosse as ensinando sua clássica receita caseira para eliminar baratas da cozinha ou em reflexões sobre moda, beleza e autoestima, nas quais defendia, em meio a lógica social do século XX, o reconhecimento e realce para suas qualidades naturais em frente a tentativas de replicar os estimados traços de uma figura famosa da época: “Faça a descoberta de si mesma - e aos poucos você descobrirá que é mais seguro e compensador valorizar-se, do que ser hoje um carbono manchado de Sophia Loren, e amanhã outro carbono manchado de Lollobrigida. Livra-se da ‘obsessão-vedete’, e você encontrará o seu próprio caminho”.
A jornalista foi responsável por preencher as páginas dos informativos com crônicas. Tarefa para qual não tinha certeza de que era adequada ou se conhecia assuntos suficientes para manter publicações semanais, mas cumpriu o compromisso, por vezes escrevendo sobre sua dificuldade com o próprio ofício ou veiculando o trecho de um bloco de notas. Algumas crônicas eram curtíssimas, como a intitulada “Aproximação gradativa” que diz “Se eu tivesse que dar um título a minha vida seria: à procura da própria coisa”.
Anúncio de Clarice Lispector como colunista do Jornal do Brasil (Imagem: Reprodução JCNET Bauru)
Crônica de Clarice Lispector no Jornal do Brasil (Imagem: Reprodução Revistas UFMT)
Crônicas são capazes de transformar o rotineiro em extraordinário, Clarice o faz independente do fato inicial que introduz a história. Somos levados a enxergar os fatores que influenciam do menor ao maior acontecimento da vida das pessoas, seja um passeio de bonde, trabalho, amores ou a contração de uma secretária. Esta última me tirou uma gargalhada tão genuína quanto inesperada quando Clarice conta sua saga para encontrar alguém que a ajudasse em sua rotina profissional. Pois bem, a autora entrevistou 40 universitários para vaga, todos muito competentes e ansiosos pela oportunidade, embora o salário fosse pequeno. Ela contratou uma estudante de filosofia, elogiou seriamente a moça e os jovens durante páginas e páginas expondo como tal juventude a deixou esperançosa com o futuro do Brasil para depois concluir:
“... Bem. Fui realmente precipitada nesta coluna de hoje. Escrevia enquanto Teté estava comigo. Depois aconteceram duas coisas: ela não tinha o mínimo de prática necessária para trabalhar e terminava fazendo com meus papéis mais bagunça do que eu. Resolvi trocá-la, mas nem precisei avisar Teté, ela fugiu com medo do falso amontoado de meus papéis. Mas agora tenho uma verdadeira secretária, isto é, uma pessoa que, além de ser uma companhia humana que eu quero, é competentíssima. Ela não quer que eu diga seu nome, Respeitarei o seu pedido”.
As entrevistas são a última seção da coletânea e encerram o livro com diálogos incríveis de uma Clarice madura e honesta com suas ideias. Uma vez disse: “Gosto de pedir entrevista - sou curiosa. E detesto dar entrevistas, elas me deformam”. Ela acreditava que todos tinham algo de bom para contar e entrevistou tímida, mas sem medo de dizer o que pensava, políticos, artistas, anônimos e colegas jornalistas. Lispector revela que teve a ideia de entrevistar Thereza Souza Campos, socialite eleita a mulher mais bem vestida do Brasil em 1975, porque não simpatiza com a moça. Logo na introdução do texto diz: “Tereza é diferente do que aparece nas fotografias e, lamento dizer, é bem mais simpática. Eu tinha que ficar realmente em guarda, porque minha tendência é gostar das pessoas”. A afeição cresce durante a conversa e é declarada nas pausas entre perguntas e respostas para mergulhar na mente da entrevistadora que nos leva pelos pensamentos que cruzam sua cabeça no momento. O que fica evidente nas primeiras questões feitas, pois Clarice lança uma de suas três perguntas fundamentais em entrevistas e as quais faço aos leitores: Qual é a coisa mais importante do mundo? Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo? e O que é o amor?
Descrever Clarice Lispector não é nada simples e não acredito que adjetivos a façam justiça, em outra entrevista ela disse: “Também não me interessa nada do que a posteridade diga de mim, se é que vão dizer alguma coisa”. Eu tenho algumas coisas e acho que você também terá, leia Clarice.
Clarice entrevistando o conselheiro João Duarte Filho em 1941 (Imagem: Reprodução Clarice Fotobiografia)
Referências:
LISPECTOR, Clarice, NUNES, Aparecida Maria. Clarice na cabeceira: jornalismo. Rio de Janeiro: Editora Rocco ltda, 2012
Biblioteca Nacional. 9 de dezembro de 1977: morre Clarice Lispector. Disponível em: https://antigo.bn.gov.br/explore/curiosidades/9-dezembro-1977-morre-clarice-lispector. Acesso em: 15 set. 2024.
Biblioteca Nacional. Nadia Gotlib sobre Clarice Lispector. Disponível em: https://antigo.bn.gov.br/acontece/noticias/2015/10/nadia-gotlib-sobre-clarice-lispector. Acesso em: 18 set. 2024.
GAÚCHA ZH. Thereza foi mais bem vestida do Brasil, entrou para família real e morreu aos 91. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2020/08/thereza-foi-mais-bem-vestida-do-brasil-entrou-para-familia-real-e-morreu-aos-91-ckdp7zcjv001101eskjw1v1o0.html. Acesso em: 18 set. 2024.
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