Sophia Lyrio
Hunter S. Thompson inaugurou o conceito de jornalismo gonzo em seu livro “Las Vegas na cabeça”. Nessa modalidade, o jornalista afasta-se de qualquer objetividade e assume o protagonismo do enredo, como narrador personagem. Além de inovar no exercício da profissão, Thompson quebra padrões tradicionais também em sua vida pessoal, regada à álcool, drogas e delitos - um elemento explorado explicitamente na construção de sua narrativa. É a partir disso que, em 1998, o cineasta Terry Gilliam produz Medo e delírio, protagonizado por Johnny Depp. Já em Diário de um Jornalista Bêbado (2011), protagonizado pelo mesmo ator e inspirado na obra de cunho “semi autobiográfico” - isso porque, nessa modalidade jornalística, o autor tem a liberdade de fundir a ficção e não ficção - de Thompson, a abordagem muda. Algumas das diferenças entre as duas obras é que são narrados momentos distintos de vida do autor em cada uma delas e a segunda é dirigida por Bruce Robinson, apesar da comparação ser inevitável. É, portanto, a produção mais atual que será aqui analisada.
Pôster Diário de um Jornalista Bêbado (Divulgação)
A cena que dá início ao filme retrata Paul Kemp (Johnny Depp) acordando em um quarto de hotel revirado após uma noitada. O modo implícito e tímido por meio do qual a vida devassa do personagem será representada é revelado logo de cara, o que deixa em aberto a reflexão: por que não explorar um aspecto que é tão forte no jornalismo gonzo e que levaria o ator, Johnny Depp, a exercer integralmente sua potencialidade, marcada pelo carisma? Na sequência, o protagonista se dirige ao pequeno jornal chefiado por norte-americanos para o qual trabalhará, em Porto Rico. Já no início, um elemento essencial da trama se revela: há uma guerra pautada na desigualdade social entre porto-riquenhos e estadunidenses. Ilustrando essa afirmativa, no momento em que Paul chega à redação, o cenário é de uma manifestação em que o povo da cidade tenta depredar o jornal. Além disso, um segundo elemento que acompanhará o desenvolvimento da narrativa é inserido também nas primeiras cenas: a posição de neutralidade assumida pelo protagonista, explicitada no diálogo com o seu chefe em que ele se diz estar sempre “no meio”.
Cabe analisar que a intenção de Thompson, em seu livro, foi relatar o período inicial de sua carreira, em que o romantismo e ingenuidade em relação ao jornalismo ainda prevalecia. Entretanto, a mensagem transmitida pelo filme não vai de acordo com a ingenuidade pretendida pelo escritor, e soa mais como mau-caratismo. Paul Kemp é um personagem regido pela conveniência, que aproveita da sua posição de neutralidade em pontos-chave do enredo para agir de acordo com seus interesses pessoais. Nesse sentido, a subtrama da obra consiste no envolvimento do protagonista com Chenault (Amber Heard), o que torna o jogo de interesses muito claro. Ela é desenvolvida como um símbolo clichê de sensualidade, exalando o modelo de mulher ideal: loira, magra, adorável e acompanhante de um namorado rico e bonito, que sustenta seus caprichos.
Envolvimento entre Chenault e Paul Kemp (Imagem: Reprodução)
Inserido nesse triângulo amoroso, Paul Kemp realizava negociações ilegais com o namorado de Chenault, Sanderson (Aaron Eckhart). Ainda que ciente do mal aos porto-riquenhos que o projeto que lhe foi proposto faria, a questão moral não foi um fator influente nas suas escolhas e o protagonista optou por aceitá-lo. Mesmo que estivesse inserido em um contexto de muita proximidade ao povo da cidade, residindo em um bairro pobre, Paul não se compadeceu à realidade daquela população. No entanto, devido às reviravoltas do enredo, o acordo foi desfeito. Então, movido pelo que aparenta ser uma vingança pessoal, o protagonista decidiu combater fervorosamente o projeto que havia aceitado antes. Essa mudança repentina de postura evidencia o caráter incoerente e conveniente do personagem, que já havia sido exibido em outros momentos da narrativa.
Já sobre o aspecto visual da película, um recurso muito nítido é o contraste entre cenários muito sofisticados e muito pobres, em sequência. O local onde Paul reside é, além de simples, insalubre. Algumas cenas retratam o povo de Porto Rico, as brigas de galo, crianças correndo e bares lotados - em um ritmo acelerado, barulho e cores quentes, o que transmite o estereótipo de pobreza visto em muitos filmes americanos. Já em outras cenas, o enfoque é a casa de praia de Sanderson, ou seus passeios de barco, em que o ambiente é calmo, o ritmo é mais lento e as cores são frias. Percebe-se que o clichê do personagem feminino não foi o único reproduzido pelo diretor. Outro ponto de destaque é a utilização de efeitos especiais de distorção durante uma experiência psicodélica vivida por Paul e seu amigo Bob Sala (Michael Rispoli), que também foi representada por meio de mudanças na iluminação, takes muito lentos e closes em lugares estratégicos, para ressaltar detalhes. Apesar de comum, a composição visual da obra não é ruim.
Em síntese, Diário de um Jornalista Bêbado não surpreende. O humor é tímido, as transgressões do jornalista são pouco exploradas e o potencial excêntrico de Johnny Depp é restrito a um personagem insípido, além de sem convicção ou ideais. O paralelo com Medo e Delírio é inevitável, visto que essa é uma obra que dispôs de recursos semelhantes, inclusive do mesmo ator para interpretar o protagonista, e se saiu tão melhor - e mais ousada - nesses aspectos. Para uma sessão da tarde despretensiosa, o filme serve. Caso o leitor esteja interessado em uma experiência cinematográfica mais construtiva, é recomendável que analise outras opções.
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