Livro do jornalista Caco Barcellos dá ao “outro lado” voz e espaço para contar sua históra
Luna Nascimento Galera
Abusado (Editora Record, 2003) é um mergulho nos bastidores do tráfico de drogas presente nos morros cariocas, sobretudo na favela Santa Marta, em Botafogo. Ao entrar no temido morro Dona Marta, no início dos anos 2000, Caco Barcellos reúne depoimentos de criminosos e de moradores da comunidade para construir uma reportagem envolvente e dinâmica em forma de romance. Trata-se de uma narrativa fascinante – que chega até parecer ficção – ao contar não somente a ascensão criminosa de Juliano VP, codinome utilizado na obra para Marcinho VP, mas também as ideias do traficante.
Capa do livro. Imagem/Reprodução: Editora Record
O livro-reportagem é resultado de quatro anos de produção do autor gaúcho. As 560 páginas são divididas em três partes, Tempo de Viver, Tempo de Morrer e Adeus às Armas, e representam um trabalho impecável de jornalismo investigativo, nos moldes do jornalismo literário. Tal processo consiste em explorar temáticas de forma mais ampla e profunda, por meio de um olhar subjetivo sobre a realidade, sempre praticado com responsabilidade e humanidade.
Entre amor, lealdade, guerras, traições e fugas inimagináveis, a história foca na trajetória de Juliano VP, da infância até o status de “dono” de uma das favelas mais lucrativas da cidade. A personalidade do protagonista instiga. Um criminoso apaixonado pela literatura e pelo cinema, preocupado com pautas sociais e comprometido a levar esperança e prosperidade para a sua comunidade. É a partir de relatos detalhados sobre a vida de VP que as portas do submundo fora da lei, nunca abertas, são escancaradas. O leitor recebe em mãos um retrato histórico da ocupação da Santa Marta pelo Comando Vermelho e a imposição de sua cruel disciplina.
Os contatos do traficante, que iam dos agressivos líderes do crime organizado até os intelectuais da época, despertavam o interesse dos seus companheiros de geração. Juliano VP era visto como uma espécie de piada entre aqueles que, muitas vezes, usavam a força ao invés das palavras. Sua fama consistia em ser um “doidão”, que matava pouco, desprezava dinheiro e propagava ideias utópicas sobre um futuro melhor.
Caco evidencia que, mesmo em um ambiente hostil, marcado pela violência urbana, identidades e laços afetivos são construídos o tempo inteiro. Sem romantizar a pobreza, a brutalidade policial, o medo e as péssimas condições de higiene, ele descreve o desenvolvimento da noção de cidadania entre os moradores do morro Dona Marta. Essa população precisou se unir em mutirões para levar água e luz aos barracos da favela – conquista fruto de grandes esforços do que deveria ser garantido por lei.
Logo nas primeiras folhas, o jornalista já critica e nos faz refletir. “A experiência reforçou meu repúdio à cultura da punição perversa, contra quem já nasceu condenado a todas as formas de injustiça”(p.11). Sua escrita denuncia uma sociedade de hierarquias, baseada em preceitos medíocres de exclusão. O reflexo desse sistema de opressão é infeliz, pois, quando uma camada popular inteira é marginalizada, outras maneiras de se afirmar e existir são encontradas. No livro, Carlinha do Rodo é apenas um exemplo disso. A menina, assim como outras crianças do Santa Marta, precisou pegar em armas para chamar a atenção da cidade e gerar escândalo nas primeiras páginas de jornais vigentes.
Abusado esclarece, ainda, duas polêmicas nacionais: a gravação do clipe They Don’t Care About Us, de Michael Jackson, autorizada por Juliano VP na favela, e a ajuda financeira recebida por VP do cineasta João Moreira Salles, responsável por rodar o documentário Notícias de uma Guerra Particular no morro.
Imagem/Reprodução: Prensadebabel
Com uma leitura cativante, Caco optou por retratar a realidade sem filtros, preservando, ao pé da letra, a maneira de se expressar daquela comunidade. Tudo para proporcionar maior agilidade e imersão ao texto. Os personagens são identificados por codinomes ou apelidos, com o intuito de expor os fatos sem mutilar a verdade e evitar retaliações dos envolvidos, tanto por parte dos policiais, quanto por parte dos criminosos. Vale ressaltar que a obra foi vencedora do prêmio Jabuti em 2004 como melhor livro de não-ficção.
Após exatos dois meses da publicação do livro, no ano de 2003, Marcinho VP foi encontrado morto dentro de uma lixeira, no Complexo Penitenciário de Bangu, onde cumpria 42 anos de pena. Seu corpo estava coberto pelos livros que gostava de ler. O assassinato é vinculado ao fato de o criminoso ter desagradado companheiros de cela ao revelar mais do que deveria na obra Abusado.
Abusado – O Dono do Morro Dona Marta é uma viagem para a realidade sensível e vulnerável daqueles que vivem à margem da sociedade, sejam honestos, sejam desonestos. Porém, sempre humanos. Um choque para quem não está acostumado. Um espelho para quem sobrevive todos os dias. Vale a pena cada página.
Link da entrevista com Marcinho VP enquanto cumpria sua sentença: Entrevista com o traficante Marcinho VP em Bangu I - Trip (uol.com.br)
Link para o documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles: https://youtu.be/yq8UWfU9wSg