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Foto do escritorPitacos

Apagados do Brasil

Rosamaria Santos

Indígena Yanomani veste máscara de proteção em Alto Alegre (RR) / Foto: Joédson Alves/EDE


Se o Estado esconde, o jornalismo escancara. Na matéria A gente precisa saber qual a doença que está nos matando, os repórteres Favero Gongora, Daniel Jabara, Ana Maria Machado e Bruce Albert denunciam subnotificações de casos de Covid-19, falta de testes e invasões às terras indígenas. Com o profissionalismo conhecido de quem trabalha no El País, eles nos revelam, no tom crítico e duro que o assunto pede, as negligências na prestação de atendimento médico às comunidades autóctones. Um texto marcante capaz de abalar qualquer pessoa que tenha o mínimo de empatia.


Conscientes da potência de alcance de cada tema abordado em um jornal mundialmente conhecido, como o El País, os quatro chamam a atenção para uma política do Brasil conhecida desde a colonização: o extermínio de indígenas. Apesar de algumas variações ao longo dos séculos, o modo de matar essa população não mudou muito. Se naquela época os europeus traziam doenças como a varíola, hoje garimpeiros levam malária e Covid-19 às populações nativas. De modo semelhante, o governo se recusa a reconhecê-los como humanos, dignos dos mesmos direitos que qualquer outro cidadão. Não há o menor esforço do Estado para garantir a eles habitação (terra), saúde e nem as suas próprias vidas. Diante de uma pandemia de consequências avassaladoras, poucos indígenas têm acesso a testes e, quando têm, os resultados positivos não entram para as estatísticas. Para piorar, as vítimas do vírus não podem passar pelo rito fúnebre dos Yanomami que consiste em queimar os corpos e comer as cinzas junto a uma papa de banana. É evidente que em um momento como esse a prática não seja aconselhável, contudo, é necessário pensar em modos de manter a segurança dos autóctones, sem desrespeitar suas tradições.


Nesse sentido, vale se espelhar em exemplos eficazes como o de Ipatse, uma das comunidades do Xingu. Trata-se de uma iniciativa coletiva que criou um aplicativo para identificar pessoas infectadas ou sob suspeita por meio de dados fornecidos pelos próprios índios. Assim, elas são colocadas em quarentena, evitando a transmissão. Além disso, com o dinheiro de doações também foi possível criar uma unidade de saúde, com cilindro de oxigênio, médico e enfermeiro, dentro da aldeia para garantir atendimento 24h. Os resultados estão sendo positivos. Até agora, ninguém morreu de coronavírus na tribo.


É interessante analisar que as medidas tomadas em Ipatse não demandaram uma solução inovadora, mas apenas força de vontade e organização. Em uma república democrática onde candidatos se elegem prometendo seguir a Constituição e trabalhar a favor de todos os brasileiros, é o próprio povo que se estrutura e se protege sem nenhuma ou com pouquíssima ajuda governamental. Se com poucos recursos, ações desse tipo conseguem salvar da morte centenas de cidadãos, imagine o que poderia ser feito se para cada aldeia o Estado se comprometesse a implementar medidas semelhantes.


Em vez disso, parece mais atrativo e importante demonstrar poder acabando com projetos de gestões anteriores. O programa “Mais médicos”, por exemplo, levava atendimento clínico a vários indivíduos que, por morarem em regiões afastadas dos grandes centros comerciais, dificilmente conseguiam fazer o acompanhamento da saúde. Mal assumiu a presidência e Jair Bolsonaro pôs fim ao planejamento por interesses pessoais e ideológicos, desconsiderando os vínculos afetivos que os cubanos já haviam construído no país e o benefício deles à população. Neste momento, os profissionais poderiam estar se juntando às equipes brasileiras para prestar socorro àqueles que foram invisibilizados. Esse não é um ponto abordado em A gente tem que saber qual a doença que está nos matando, porém é fruto das reflexões causadas por ele. Como se pode notar, o trabalho é tão bem desenvolvido que ao longo da leitura é impossível não associar a notícia a outros fatos correlacionados. Assim, passamos por um passeio nas nossas memórias da política nacional, nem sempre agradáveis, enquanto nos questionamos quanto tempo mais levará para que grupos minoritários possam viver em segurança, gozando plenamente dos seus direitos.


Voltando à reportagem, um dos aspectos que exprimem a eficiência dos jornalistas é o reconhecimento da impossibilidade de tratar do tema da mesma forma que quem está vivendo a situação noticiada. Embora as narrativas dos repórteres sejam comprometidas com a realidade, elas não dão conta de exprimir com exatidão o que se passa nas comunidades indígenas. Assim, abrem espaço para que os Yanomamis possam falar das suas experiências ao perderem um familiar e/ou ficarem doentes. No entanto, reescrever esses depoimentos poderia causar uma perda da profundidade do que estava sendo contado. Pensando nisso, os quatro optaram, brilhantemente, por transcrever as falas em discurso direto livre, sem alterações nem para corrigir os erros de concordância. Com isso, a matéria ganha mais credibilidade, perspicácia e sai da típica cobertura feita de um lugar externo aos fatos. Com esse instrumento, leitor e entrevistado se tornam próximos, mesmo que não se conheçam. De meros espectadores do sofrimento alheio, eles passam a ser quase confidentes e a cada palavra de dor proferida pelo interlocutor, quem lê sofre junto.


Um único detalhe poderia ter sido acrescentado à redação: mais fotos. Há apenas uma no início do texto. Leitores mais ligados a recursos visuais certamente sentirão falta do elemento que culminaria numa maior comoção do público com os personagens da história. Conhecer o rosto de quem lhe fala é sempre agradável e pode ajudar​ a estreitar laços. Imagens e palavras se complementam de maneira muito atrativa para quem recebe a mensagem, tornando relatos mais arrebatadores.


Nitidamente, A gente precisa saber qual a doença que está nos matando é a matéria que todo mundo deveria ler durante esse caótico momento em que tanto se fala de olhar para o outro. O “outro”, na verdade, não é dissociável do que entendemos por “nós”. Ele é parte vital desse país e está sendo submetido à condições desumanas. Ter ciência disso, é apenas o primeiro passo para cobrar por mudanças e defender o direito à vida dessas pessoas. Foram elas que conseguiram fazer algo que para boa parte do globo parece impossível: viver em harmonia com a natureza. Suas ricas culturas, histórias e conhecimentos os tornam ainda mais essenciais ao Brasil. Embora essas questões sejam relevantes para mostrar o quão importante é a defesa das comunidades indígenas, o argumento mais importante é muito simples, todo cidadão tem o direito de viver e é por isso que devemos lutar por eles. Aos jornalistas em formação, aos quais esse texto é direcionado, interessa analisar a maestria com a qual Favero, Daniel, Ana e Bruce desenvolvem a notícia, enfatizando todos os pontos importantes e dando voz a quem o país calou, atitude fundamental na defesa da Declaração Universal dos Direitos dos Homens que é um dever da profissão. Em suma, a reportagem impacta a cada parágrafo.


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