Anne Poly
A mudança começa com um sussurro. A frase do pôster do filme norte-americano Histórias Cruzadas (“The Help’’, na língua original) é forte e sucinta, e já desenha a pegada do enredo da produção cinematográfica que foi indicada a 4 Oscars em 2012, vencendo o de Melhor Atriz Coadjuvante, com Octavia Spencer. Inspirado no livro de Brunson Green, foi roteirizado pelo melhor amigo da escritora. O poder transformador do jornalismo é um dos pilares da história, que atualmente tem sido motivo de polêmica nas redes sociais: Viola Davis, célebre atriz, teria se arrependido do seu papel no premiado filme. Portanto, nessa resenha vamos desvendar o motivo para tal arrependimento, além de entendermos a profundidade da narrativa da obra.
(Imagem: Reprodução)
Inicialmente, o enredo pode parecer simples: uma jornalista decide contar as histórias de empregadas domésticas cheias de experiências e sofrimentos por meio de um livro-reportagem. No entanto, o filme é tão envolvente e arrebatador que essa simplicidade cai por terra em questão de minutos, e tudo graças à direção de Tate Taylor, aclamado tanto pelo público quanto pela crítica. Eugenia "Skeeter" Phelan, interpretada por Emma Stone, é uma jovem branca e rica da década de 60 em Jackson, Mississippi, que, apesar de seus privilégios e do contexto em que vive, acredita na igualdade racial e na independência da mulher na sociedade. Seu maior sonho é ser escritora, mas ela trabalha em um jornal local como colunista dando dicas para donas de casa. Para se familiarizar com o tema, decide conversar com Aibileen Clark, papel de Viola Davis, empregada negra com um passado doloroso. Sua perspectiva passa a mudar a partir dessas entrevistas, e Eugenia começa a sentir desconforto perto de suas amigas socialites, preconceituosas e egocêntricas.
A protagonista não se encaixa nos moldes do mundo em que vive, e por isso tem um olhar sensível para com os depoimentos de Aibileen, que ficam mais profundos do que apenas dicas domésticas. Assim que a oportunidade de publicar um livro surge, Skeeter resolve juntar uma coletânea de vivências da serviçal. No entanto, a editora exige mais histórias, e é assim que Minny Jackson (interpretada por Octavia Spencer), grande amiga de Clark e também empregada negra, ainda que relutante no início, passa a contar o que viveu ao longo de suas experiências profissionais. O anonimato foi garantido, então muitas outras mulheres passaram a compartilhar as injustiças que tinham vivido em seus empregos e em seus cotidianos. O racismo era escancarado em 1963, o que explica o ódio que os brancos do filme despejam contra negros que apenas desejam um assento no ônibus, por exemplo. As cenas de injustiça racial se confundem com a realidade de tal maneira que é fácil enxergar a arte imitando a vida ao se observar um jovem preto morrendo ao fugir de policiais, algo que aconteceu com o filho de Aibileen Clark.
A desigualdade racial constitui grande parte do enredo, mas a pressão da jovem branca para casar, largar seu emprego e viver em prol de seu lar também marca a série de impasses de Histórias Cruzadas. Ao recolher depoimentos para seu livro reportagem, Skeeter deixa seu pretendente amoroso em segundo plano, o que decepciona seu até então futuro marido. O término do namoro deles revela um traço de personalidade da jornalista que é comum ao perfil de certas mulheres modernas: a dedicação total à carreira, o foco profissional como prioridade. A fuga dos estigmas sociais que controlam os destinos de todos ao seu redor torna Eugenia uma personagem de fácil identificação. Se hoje em dia meninas são pressionadas a seguirem o padrão de uma vida baseada em casamento e filhos, naquela época o desvencilhamento dessas imposições era ainda mais difícil.
Uma das falas mais marcantes da trama é “Coma meu cocô’’. Não, você não entendeu errado. Minny, após anos de humilhações e injúrias trabalhando na casa de uma das mulheres mais ricas da região, decidiu dar um presente para a socialite causadora de tanto sofrimento: uma torta de chocolate. A homenagem foi bem recebida, e cheia de orgulho, Hilly Holbrook (papel de Bryce Dallas) se delicia com a sobremesa. O choque acontece quando sua ex-empregada revela a verdade: aquele aperitivo era composto de suas próprias fezes, o que enfurece a mulher. O plot twist é surpreendente e divertido, roteirizado com genialidade e quebrando o clima pesado de tamanho preconceito.
(Minny com a cômica torta de "chocolate"/Imagem: Reprodução)
Após o sucesso do filme, era de se esperar que ele fosse motivo de orgulho para todos que fizeram parte dele. Viola Davis, contudo, demonstra certo arrependimento por ter participado de The Help. As mulheres negras não tiveram suas vozes ouvidas em plenitude, suas perspectivas foram escritas por meio de alguém que nunca poderia decifrar o que se passava por suas cabeças. No fim, Skeeter publica um livro de sucesso, recebe honra, dinheiro e reconhecimento, enquanto as verdadeiras protagonistas do filme são jogadas para escanteio, na sombra da “salvadora branca’’, heroína caucasiana supostamente superior à miséria das negras à sua volta. A proposta da obra foi sensacional, mas seria ainda melhor entender as histórias a partir das pessoas que as vivenciaram. O jornalismo contemporâneo também manifesta essa omissão: as perspectivas de repórteres negros ficaram em segundo plano nas bancadas de jornais durante a cobertura dos protestos do Black Lives Matter. O protagonismo do filme não deveria ter sido da jornalista, embora seu olhar investigativo e sua vontade de dar voz às minorias sejam louváveis. A narrativa gira em torno dos negros. O racismo é o vilão. Aibileen e Minny estão naturalmente no centro dos 137 minutos de duração da produção, e suas narrativas deveriam ter tido um desenvolvimento maior do que o apresentado. Seus sofrimentos e perdas foram expostos de maneira bem vaga, em contraste com os momentos de protagonismo das dificuldades de Eugenia, quase sempre menos intensos que os problemas enfrentados pelas serviçais.
(Aibileen, personagem interpretada por Viola Davis/ Imagem: Reprodução)
Diversas personagens interessantes enriquecem o filme, e assisti-lo não é uma perda de tempo, apesar do conceito de uma “salvadora branca’’. A verdade é que, no jornalismo, temos que,idealmente, posicionar os fatos acima dos repórteres, e a história deveria ter usado essa técnica ao abordar temas raciais, exaltando a figura do negro. Embora não seja perfeito, o longa-metragem é um drama repleto de emoção, luta e coragem, e os assuntos abordados na obra são de suma importância para o mundo atual. Histórias Cruzadas é ótimo para os futuros jornalistas que almejam denunciar injustiças por meio de sua profissão, e o enredo explica com clareza como era viver em um período no qual negros eram considerados indignos de estarem em posições honrosas, ainda que a partir da visão de alguém em posição de privilégio. Até mesmo o erro do filme pode ser útil, por exemplificar o uso incorreto da representatividade das minorias. Ou seja, é o manual perfeito do que um repórter deve e não deve fazer.