Permeando os limites morais do jornalismo, mangá sutilmente questiona o conceito de neutralidade tão atribuído à imprensa de qualidade
Beatriz Bezerra
Meio segundo. De acordo com estudos da Universidade de Princeton, esse é o tempo médio em que o cérebro humano constrói um julgamento acerca de outro indivíduo. Se mesmo uma fração momentânea de tempo pode ser decisiva à uma formação de opinião, é natural se questionar o quanto a narração de um fato influencia nossos posicionamentos. É possível contar uma história sem transmitir o mínimo de emoções? Até onde vão os limites da imparcialidade? É neste aspecto que o mangá de Akimi Yoshida, Banana Fish, atrai o seu leitor à uma comovente narrativa na qual o envolvimento emocional é elemento essencial ao desenvolvimento do enredo.
Em uma história que explora as conexões humanas em suas formas mais complexas, Banana Fish imerge o leitor à trama de forma que é quase impossível não simpatizar com as personagens. Trazendo a perspectiva de um lado que nem sempre é bem representado, dos pretensos delinquentes e criminosos, o mangá faz com que seja possível se compadecer de suas experiências, entendendo as circunstâncias que os levaram à essa vida. Contudo, isso também é perceptível aos olhares dos jornalistas presentes na narrativa. Tanto como qualquer outra pessoa exposta aos horrores de uma vivência repleta de sangue, lágrimas, abusos e traumas, seus julgamentos são influenciados por aquilo que presenciaram.
O enredo começa em Vietnã, 1972. Quando um esquadrão das forças armadas estadunidenses perde quase todos seus homens devido ao surto psicótico de um dos soldados, não há investigação que pareça explicar o que levou Griffin a atirar em todos seus companheiros de pelotão. No entanto, uma única pista parece pairar sobre as memórias dos envolvidos: “Banana Fish”. Essas foram as únicas palavras proferidas pelo veterano de guerra, não apenas durante o incidente, mas pelo resto de toda sua vida. Nova Iorque, 12 anos depois. O líder das maiores gangues de rua da cidade e irmão de Griffin, Ash Lynx, presencia a morte de um sujeito misterioso. Em seu último suspiro, o homem presenteia o gangster com uma substância suspeita, recitando como suas palavras finais um endereço que desperta sua curiosidade.
(Painel Banana Fish, Vol. 7, C. 01. Eiji consolando Ash)
Lynx, em português, Lince, parece ser a alcunha perfeita para definir o astuto jovem comandante das gangues mais pesadas de Nova York, Ash. A palavra, vinda do latim, significa “brilhante”. Com um QI de 180 pontos, uma beleza impactante e uma fachada carismática, Ash se enquadra ao seu codinome em seus mais diversos sentidos. Então, quando o fotojornalista japonês, Shunichi Ibe, e seu assistente, Eiji Okumura, acabam sendo atraídos por seu discurso, é fácil entender por que se sentem tão instigados a estudar o criminoso.
Eiji, apenas dois anos mais velho que Ash, passa por um conflito interno ao conhecê-lo. Okumura, que até então tinha vivido uma vida pacata como atleta no Japão, enfrenta um choque ao lidar com a realidade do gangster, que apesar de mais novo, aparentava ter uma experiência de mundo muito maior que a sua, mas muito mais dolorida também. Ao quebrar o primeiro encanto que sentiu com a personalidade cativante de Lynx, Eiji percebeu que havia mais a imponência de Ash do que ele deixava transparecer na superfície. E foi isso que o atraiu a tentar entendê-lo.
(Painel Banana Fish, Vol. 5, C. 03. Ash Lynx trajando um terno)
O envolvimento emocional de Eiji com Ash era, na verdade, a força motora para o que provavelmente foi o maior furo jornalístico que tanto Okumura quanto Ibe puderam experienciar. O que começou como um trabalho fotográfico simples se transformou em uma investigação profunda, envolvendo assassinatos, a máfia e a revelação de segredos de Estado. Antes mesmo que autoridades locais estivessem cientes da situação, Eiji e Shunichi já haviam descoberto o verdadeiro significado de Banana Fish, tudo porque Okumura, apaixonado por Lynx, decidiu acompanhá-lo nessa empreitada.
Mesmo quando suas vidas são expostas ao máximo do perigo, Ibe não consegue deixar de lado o pensamento de que, de certa forma, toda essa adrenalina valeria a pena no final. Como diz o repórter: “Ao menos teremos fotos maravilhosas. Essa é uma oportunidade única em nossas vidas.”
O que muitos alegam ser uma característica que diminui a qualidade jornalística, a falta de neutralidade, é justamente o que torna Eiji e Ibe os melhores jornalistas que poderiam ser, motivados a chegar ao final da história com o intuito de ajudar Ash. Porém, eles não são os únicos repórteres do mangá que são instigados por motivos pessoais. Max Lobo é a prova viva de que o envolvimento emocional pode ser o combustível perfeito para as melhores matérias.
Lobo era um dos sobreviventes do esquadrão atacado por Griffin em 1972. Não só isso, Max era seu melhor amigo e foi a pessoa que deteve Griffin durante seu surto, atirando nas pernas de seu companheiro. Ao final da guerra, Lobo passou a trabalhar como jornalista e o mistério que nunca conseguiu deixar de lado era justamente o mesmo que o assombrava todas as noites: Banana Fish. Culpado pelo final terrível de seu amigo, o repórter buscava incessantemente uma resposta para o que havia acontecido naquele dia.
Dez anos após o início de suas investigações, Max acidentalmente encontrou Ash. Ao descobrir seu parentesco com Griffin, Lobo revelou ao jovem que conhecia seu irmão. A partir desse momento, as personagens passaram a trabalhar lado a lado para desvendar o caso. Max, particularmente mais motivado do que nunca, parecia acreditar que era um sinal do destino que Lynx tivesse cruzado seu caminho. Agora enquanto um time, Lobo, Ibe, Eiji e Ash vão até o fundo para solucionar a verdade. Com a ajuda de Max, o rapaz descobre que o homem o qual havia lhe entregue a substância suspeita estava também envolvido em investigações sobre Banana Fish. Em contrapartida, Lobo ganha mais uma pista: o endereço. Deste momento em diante, o enigma passa a se desatar continuamente, chegando cada vez mais próximo de uma conclusão.
Contudo, o grupo enfrenta inúmeras adversidades antes de finalmente alcançarem o fim de sua jornada, fazendo com que fiquem mais íntimos ao passar de cada capítulo. Inevitavelmente, tal intimidade os expôs a diversos riscos, uma vez que quanto mais se aproximavam, colocavam-se em um maior perigo, visto que Ash era um alvo de alta procura. Apesar disso, ainda quando Eiji se encontra à beira da morte ou quando a segurança da família de Lobo fica comprometida, as personagens não se arrependem de suas decisões. É neste ponto que surge um questionamento interessante quanto à parcialidade: como cobrar neutralidade de uma pessoa que está tão envolvida à situação ao ponto de arriscar não somente seu bem-estar pessoal, mas também de seus familiares?
Eiji, Ibe e Max conhecem a história de Banana Fish em seus mínimos detalhes, não somente por um trabalho de pesquisa, mas sim por terem a vivenciado em suas mais excruciantes etapas. Entre perdas, angústias e traumas, a procura pela verdade veio à um alto custo. As memórias desse período de suas vidas nunca poderão ser apagadas e muito menos as emoções a elas atreladas. Deveriam, então, abster tais sentimentos de suas reportagens? Seria isso justo ou fiel ao que descobriram durante suas trajetórias? Seria isso possível? Se mesmo a escolha de palavras pode ser o suficiente para influenciar um leitor, como relatar de forma imparcial, neutra, uma história que se viveu na pele?
Banana Fish explora de forma cativante os limites das emoções humanas e, principalmente, a empatia. Akimi Yoshida nos obriga a finalmente olhar as narrativas daqueles que são muitas vezes representados enquanto vilões. É uma nova perspectiva sobre nossa sociedade, tocando em uma ferida que sequer percebemos que está aberta. Em cada um de seus painéis, a história implora que nos entreguemos a seus apelos e é fácil obedecer. Talvez seja por isso que também seja simples entender seus jornalistas que, humanamente, também se deixaram levar.
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