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"Cidadão Kane" – Clássico do cinema explora a visão multifacetada de um magnata da imprensa

Atualizado: 15 de out. de 2020

João Maurício Maturana


O ano era 1941. Hollywood caminhava para o auge de sua Era de Ouro, enquanto o mundo estava literalmente em guerra. Comandada pela nova forma industrial de se fazer cinema nas mãos de grandes produtoras como 20th Century Fox, Paramount Pictures e Warner Brothers, e a essencial presença do star system, no qual atrizes e atores eram essenciais tanto para a divulgação quanto para a própria realização dos filmes, Hollywood estava marcada por formas e gêneros em consolidação, cujo sucesso possibilitou que filmes mais artísticos e livres ganhassem mais espaço na indústria. Nesse contexto, estreia um dos maiores clássicos do cinema - Cidadão Kane, dirigido, estrelado, co-escrito e produzido por Orson Welles.


O filme, livremente inspirado no empresário, dono de uma grande rede de jornais, William Randolph Hearst, conta a história de Charles Foster Kane (Orson Welles), e a busca da imprensa por descobrir o que significava “rosebud”, sua última palavra antes de falecer. Dessa forma, são entrevistadas diversas personagens que marcaram sua vida, como Susan (Dorothy Comingore), sua segunda esposa; Mr. Bernstein (Everett Sloane), seu gerente em Nova York; Jedediah Leland (Joseph Cotten), um antigo amigo; Raymond (Paul Stewart) o mordomo e; os escritos de Walter Thatcher (George Coulouris), servidor do banco que foi seu tutor, para tentar entender a enigmática figura de Charles Kane.

(Pôster do filme / Imagem: Reprodução)


Nesse cenário, a narrativa toda se guia pela busca de Thompson (William Alland), um repórter, por entender o significado da última palavra dita por Kane, e também por tentar decifrar quem foi esse misterioso magnata. Isso é o que leva a procura do filme por diferentes perspectivas para construir Charles Kane. É interessante ressaltar que nesse percurso o rosto de Thompson quase não é mostrado, reforçando que a história não é sobre ele, e que o repórter serve somente como um eficaz recurso narrativo para a história. Assim como um bom jornalista, o diretor também busca a verdade em diferentes fontes.


O roteiro busca construir toda a personalidade de Charles pelo o que os outros contam, sem ceder a uma narrativa unilateral em que temos somente o ponto de vista do protagonista. Pouco a pouco, entendemos mais sua origem, sua visão de vida e compreendemos suas ações. Cada personagem complementar exerce sua função de construir a imagem de Kane, o que faz com que Welles vá de forma contrária à maioria das produções da época, inovando por fazer um filme fundamentalmente sobre estudo de personagem, aprofundando camadas e camadas de um magnata que perde tudo que mais prezava.


O filme também traz novidades nas questões de profundidade de campo, fazendo com que todos os elementos em cena tenham não só um sentido para estarem ali, mas também para que exerçam uma ação efetiva na história. A fotografia do filme procura movimentos inovadores para a época, tentando favorecer a narrativa de cada personagem que conta sua versão de quem foi Charles Kane – vide a cena em que o magnata agride Susan e sua imagem cresce sobre a esposa.

(Still do filme exemplificando o uso inovador da profundidade de campo / Imagem: Reprodução)


A história também preza por enfatizar o grande poder que a imprensa, em especial a de Charles Kane, exerce sobre os Estados Unidos daquela época, garantindo eleições, pressionando o país a entrar ou não em alguma guerra e moldando a imagem de grandes personalidades. Ao longo da trama, é demonstrado com ainda mais vigor tal poder, mas dessa vez não pelo império de Kane, mas sim pelo The Daily Chronicle, quando o jornal noticia o caso de adultério do magnata, que no momento estava concorrendo a governador de Nova York, custando ao candidato sua eleição. Toda essa temática relativa à grande força da imprensa chegou a inspirar o documentário Muito Além do Cidadão Kane, de Simon Hartog, que investiga as supostas relações da Rede Globo com práticas antidemocráticas e ilegais, questionando as atitudes do império de Roberto Marinho.


O clássico também serviu de inspiração para o novo filme de David Fincher, Mank, que será baseado na história real dos bastidores de Cidadão Kane, abordando a relação de Welles com o roteirista Herman J. Mankiewicz, questionando quem seria o verdadeiro responsável pelo sucesso da obra. O longa está marcado para estrear na Netflix em outubro deste ano.

Portanto, o que poderia ser apenas uma biografia sobre um empresário ambicioso que chegou ao poder por meio de uma herança ganha contornos muito mais interessantes na visão de Orson Welles. O personagem em questão, que não se importa com toda a sua fortuna e vai atrás do ramo da imprensa, porque “acha que deve ser divertido comandar um jornal”, na verdade tudo que queria na vida era amor, como afirma Leland, em um dos seus diálogos. Necessidade essa que acaba justificando de forma muito coerente todas as suas ações ao decorrer da trama, seja sua ambição pela política, seu adultério, a construção de um palácio para criar um mundo que o agradasse mais, ou até o uso da sua fortuna para comprar influência e o dito amor, nos seus próprios termos.


O filme termina com a mesma mensagem que aparece em seu início, “não ultrapasse”, reforçando a ideia de que tal placa remetia, na verdade, à história, e ao próprio conhecimento de quem era Charles Foster Kane. Esse conhecimento era guardado a sete chaves, e nem mesmo juntando todas as peças apresentadas pelos mais próximos ao empresário conseguiu-se compreender que sua última palavra em vida significava um grito por um tempo em que tinha alguém ao seu lado, e o jovem Charles não precisava se preocupar em obter amor. Logo, a imagem daqueles que o acompanhavam não era preto e branca como as páginas de um jornal impresso.

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