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“Em nome de Deus”: tudo, menos divino

Nayara Estrela


Seriado documental “Em nome de Deus” da plataforma digital Globo Play que narra em seis episódios o ponto inicial para as investigações de crimes cometidos pelo médium mais famoso do Brasil. Retrata a história de João Teixeira de Faria, o João de Deus, e de algumas vítimas de abuso sexual que tiveram coragem de expor seus rostos com esperança e expectativa de inspirar outras mulheres que foram abusadas por ele para saberem que não estão sozinhas e não terem medo de retaliação espiritual.


(FOTO: O médium João de Deus/ Reprodução/ Site Casa Dom Inácio )


João Teixeira de Faria, nascido no interior do município de Cachoeira de Goiás, conhecido como “João de Deus” e “João de Abadiânia” no Brasil e “John of God” no exterior, é um médium curador, escritor, empresário e condenado pelo estupro de centenas de mulheres. Milhares de pessoas o procuram em busca de cura para as próprias dores, mas vão embora sem dinheiro e com traumas que são levados para o túmulo. O curandeiro é dono de um império milionário erguido com base na exploração da boa fé das pessoas. Os fiéis eram orientados a ficar hospedados em pousadas indicadas por funcionários da Casa Dom Inácio de Loyola e usufruir dos estabelecimentos diretamente ligados ao médium, como a Livraria Dom Inácio, a Farmácia de Manipulação JFY e Cristais Dom Inácio.


Pedro Bial, jornalista e apresentador, tinha o desejo de levar João de Deus para o programa da TV Globo “Conversa com Bial” mas teve uma surpresa negativa quando começou estudar a vida do médium e entendeu que não tinha a fé suficiente para acreditar nos milagres realizados por ele. Camila Appel, jornalista que trabalha na produção do programa, decidiu apurar mais informações sobre João. Ela se deparou com histórias contadas por uma amiga que trabalhou na Casa Dom Inácio de Loyola, onde eram realizados os supostos milagres, sobre possíveis casos de estupro. Com o primeiro fio da narrativa, a jornalista foi ligando os fatos até chegar em um grupo de mulheres com histórias semelhantes sobre abuso sexual cometidos por João de Deus.


Em cada episódio são apresentados relatos de mulheres traumatizadas de todos os tipos e idades e que são obrigadas a conviver com o medo diariamente. A primeira mulher a se identificar foi a coreógrafa holandesa Zahira Mous, que tinha o intuito de curar seu trauma sexual e viajou até o Brasil para encontrar João de Deus, mas ela acabou sendo mais uma vítima entre tantas do curandeiro brasileiro. Outras mulheres contaram suas histórias e a fase da negação após o abuso, por não acreditarem que alguém que deveria ser o sinônimo de cura e paz seria capaz de cometer atrocidades do tipo.


Também é relatado o caso da atriz piauiense Deborah Kalume, que conviveu com seu marido em coma devido a um acidente de carro, o diretor de cinema Fábio Barreto, e foi buscando a cura de seu marido que conheceu a Casa Dom Inácio de Loyola. A atriz conta que sua última esperança estava depositada no encontro com João de Deus e que neste, ele pediu para ela tirar todos os metais do corpo, como cinto e sutiã, para não impedir o fluxo de energia. Deborah alega ter ficado paralisada enquanto o médium tirava a roupa dela, passando a mão no seu corpo enquanto rezava a oração “Ave Maria”. Assim como muitas mulheres, a atriz entrou em uma fase de negação pós trauma pois não queria acreditar que aquela situação tinha realmente acontecido.


Quase ninguém comentava a respeito da pressão sobre os postos de saúde de Abadiânia e das mortes causadas por intervenções, ações e operações realizadas por João Teixeira. Na Casa Dom Inácio de Loyola aconteciam supostos milagres, como cadeirante voltar a andar ou cego voltar a enxergar, mas a maioria dessas intervenções cirúrgicas eram feitas sem o mínimo de respaldo médico e isso acarretava na morte de muitos fiéis, como a do bailarino americano Javier Bustus, que era soropositivo e viajou até o Brasil com o intuito de buscar sua cura. Ao chegar em Goiás, o médium dispensou seus remédios que combatiam o vírus e logo depois o dançarino faleceu.


João de Deus era um homem muito poderoso, por ter amigos no Supremo Tribunal Federal e também por ter consulentes famosos como os políticos Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, o humorista Chico Anysio, a apresentadora Xuxa e os atores Marcos Frota e Shirley Maclaine. Quando a justiça tornou público os relatos dos abusos, a maioria desses famosos se manteve em silêncio, exceto Xuxa Meneghel, que se declarou contra o médium e se disponibilizou a amparar e dar voz às vítimas. A atriz global Bárbara Paz também se manifestou contra o curandeiro e se afirmou indignada e com muita dor por perder a fé em algo que ela já acreditou e decretou que seria a hora de justiça.


João Teixeira de Faria foi condenado no dia 20 de janeiro de 2020 a 40 anos de prisão em regime fechado pelo estupro de cinco mulheres. Todas as vítimas celebraram e sentiram que a justiça estava sendo feita. Em março do mesmo ano, a pandemia do Covid-19 começou e, como o curandeiro está no grupo de risco, ele passou para o regime domiciliar. As vítimas, que expuseram seus rostos e seus relatos, estão em constante estado de medo, já que prisão domiciliar no Brasil significa impunidade, por permitir o convívio de um criminoso com seus aliados, desfrutando de um conforto conseguido às custas do sofrimento alheio.


O documentário tem como objetivo principal ser a voz de quem não tem voz. “O silêncio era o principal esconderijo de João de Deus. Sua história de horrores teria permanecido esquecida, se não fosse o volume dos sussurros, tímidos à princípio, mas que, pouco a pouco, ganhou corpo e som e virou um coral crescente de vozes de mulheres a vencer a vergonha numa corrente de coragem”, relata Bial. O documentário dirigido por Monica Almeida, Gian Carlo Bellotti e Ricardo Calil é pesado por tratar de um assunto delicado e real para muitas mulheres, mas extremamente necessário e que mostra a força do jornalismo.


Disponível no Globo Play.



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