Jornalistas vêm sendo cada vez mais alvo de ações judiciais movidas por magistrados
Pedro Guevara
Um dos repórteres investigativos mais reconhecidos do país é condenado a indenizar um ministro do Supremo Tribunal Federal em quase R$ 320 mil. Um jornalista independente é obrigado a pagar R$ 8 mil a uma juíza do interior de Minas Gerais. Em escalas diferentes, a mesma questão: o jornalismo que questiona o Judiciário.
No primeiro caso, foi Rubens Valente o alvo. Gilmar Mendes, ministro do STF, movia uma ação desde 2014 contra o repórter pelo livro “Operação Banqueiro”, em que, segundo o magistrado, Rubens o teria difamado “a partir da exposição inventiva e gravemente distorcida dos fatos”. Para além da punição financeira, também ficou definido que as próximas edições de “Operação Banqueiro” deveriam incluir a íntegra da petição inicial e a sentença do caso do banqueiro Daniel Dantas, foco da obra. Isso totalizaria mais de 200 páginas, o que na prática inviabilizou a circulação do livro no país.
Rubens Valente em entrevista (Imagem: Portal dos Jornalistas)
Já na segunda ocasião, foi Leandro Demori, ex-editor executivo do The Intercept Brasil, que foi condenado por uma discussão no twitter com a juíza Ludmila Grillo. O repórter também foi alvo de uma decisão judicial determinando que ele publicasse em sua rede social um texto indicando “retratação pública, retirando, por meio desta, todas as acusações feitas por mim à insigne magistrada”.
Demori, que participou do EcoCast da UFRJ recentemente, falou sobre o caso e a maneira como o Judiciário é encarado pela sociedade brasileira: “O próprio sistema judicial se protege muito, ele é muito encastelado. [...] Eu fui processado por uma juíza na comarca onde ela atua, numa cidade no interior de Minas, eu fui julgado pelos colegas de cafezinho dela, obviamente eu não tinha chance nenhuma de ganhar aquele processo. [...] Os juízes que passaram em concursos e que hoje estão trabalhando têm que entender que essa vaga foi criada por nós, pela sociedade. Nós demos a eles a chance de se tornarem juízes, eles fizeram um concurso, passaram, recebem um salário que é pago por nós, eles são nossos funcionários, nós não devemos nada aos juízes. [...] Então quando a gente faz essa crítica, a gente está dizendo que o sistema que nós, sociedade democrática, criamos, precisa ser aperfeiçoado.”
Leandro Demori (Imagem: Wikipédia)
Pilha de processos (e de dinheiro)
Não são casos isolados. Em levantamento feito em 2021 pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), os números mostraram que profissionais da imprensa e veículos de comunicação sofreram mais de 4 mil ações judiciais desde o ano de 2002. No entanto, 97% destas foram movidas apenas na última década. Por mais que dentre os processos existam acusadores de diferentes áreas de atuação, mesmo naquelas em que quem move a ação não é um magistrado, na maioria das vezes o assédio judicial contra os jornalistas é sustentado – ou até apoiado – pelo Judiciário, mostra o estudo da Abraji. Acusar a imprensa de difamatória não apenas tem funcionado do ponto de vista moral, com decisões costumeiramente favoráveis aos acusadores, como também se tornou um negócio lucrativo, com altas indenizações.
Além de serem constantemente indenizados, os juristas também não querem indenizar nas poucas vezes em que perdem seus processos. A Advocacia-Geral da União (AGU) moveu uma ação pedindo ao STF que isente os magistrados brasileiros de arcarem por “excesso de linguagem e danos morais” em processos na Justiça comum: possíveis injúrias da classe sejam julgadas apenas pelo Conselho Nacional de Justiça, o CNJ. Na prática, magistrados só poderiam ser julgados por outros magistrados nesses casos.
Supremo Tribunal Federal em Brasília (Imagem: Valor Econômico)
Julgamento de quem julga
O CNJ é responsável por, ao menos na teoria, fiscalizar eventuais abusos do Judiciário. Mara Grumbach Mendonça, juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e graduada pela UFRJ, defende que a maior parte dos juízes é fiel ao cumprimento da lei, sem nenhuma espécie de corporativismo: “Como magistrada integrante do Poder Judiciário brasileiro posso afirmar que a maioria dos juízes é bastante comprometida com a eficácia da prestação jurisdicional e celeridade processual, principalmente os juízes de 1º grau de jurisdição. Atualmente, nós juízes somos fiscalizados e cobrados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e pela Corregedoria dos nossos tribunais, temos que cumprir as metas impostas, sob pena de responder a processos administrativos. Temos consciência da responsabilidade do cargo e como o julgamento de uma demanda pode afetar a vida de um cidadão, no que diz respeito principalmente à sua liberdade, à sua família e ao seu patrimônio”.
Todos iguais perante a lei?
O desnível de tratamento entre as instâncias sociais, contudo, não é percebido apenas de fora do direito. Júlia Mitke, formada em Direito pela UFRJ e atualmente cursando o primeiro período de jornalismo na ECO, revela experiências desconfortáveis de atuação na área de sua primeira graduação: “Desde o começo da faculdade, professores que eram do poder judiciário, juízes, promotores, que tem muitos na UFRJ [...] a gente sempre viu uma certa pompa e arrogância. Eu estagiei em órgãos públicos, principalmente na defensoria, [...] os defensores são muito arrogantes, já lidei com muitos que nem atendiam os assistidos, deixavam esse papel para os estagiários, para os servidores. Então com certeza eu sinto, vejo e presencio, até atuando como advogada, que lidar com juízes, promotores, etc. é sempre muito difícil, porque eles sentem uma superioridade de não aceitar falar com advogados, com ninguém. Não aceitam falar. Acham que a palavra deles é a que importa”.
Ações da imprensa
A imprensa também tem se movido para brecar novos assédios judiciais. Em dezembro de 2021, a Abraji levou ao STF uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) buscando impedir novas intimidações e condenações contra jornalistas. A Abraji pede que, sempre que ficar caracterizada uma situação de assédio judicial, os processos em série sejam reunidos e julgados na comarca de residência do réu, isto é, do jornalista ou comunicador. “Com isso, será possível evitar que o profissional tenha gastos excessivos com sua defesa para comparecer a JECs situados nos locais mais diversos do país”, argumenta a entidade.
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