Clara Quinteiro Hernandez
Rir pra não chorar. Ou chorar de rir. Essa República Vale uma Nota atravessa as histórias (ou melhor, as estórias) do Brasil durante mais de um século de República. De Deodoro a Bolsonaro, acompanhamos o vai e vem da política brasileira sob o olhar irreverente de um colunista de jornal que escancara o melhor – e o pior – da nossa história. Fruto da parceria entre o jornalista Octavio Guedes e o economista Daniel Sousa, ambos comentaristas da Globonews, o livro é a prova de que o brasileiro pode reclamar de muitas coisas, mas tédio definitivamente não é uma delas.
Publicada pela editora Máquina de Livros, em 2019, a obra é uma forma de registro inédita dos acontecimentos da República brasileira. E se o colunista é um personagem fictício, os episódios narrados não poderiam ser mais reais. Organizados em ordem cronológica, fatos curiosos foram transformados em pequenas notas jornalísticas, revelando uma espécie de “lado B” da nossa história, numa abordagem que foge da historiografia clássica e do ensino tradicional.
(Capa do livro / Imagem: Reprodução)
Escolher o formato de notinhas para contar mais de um século de história parece inusitado, mas foi assertivo. Os autores criaram um personagem que acompanha de perto os 130 anos da República e enxerga seu nascimento com esperança. “Agora sim caminharemos para o futuro!”, ele escreve em 16 de novembro de 1889. Mas, apesar da expectativa, esse sentimento não dura muito. A coluna passa a constatar repetições ao longo da história e chega à conclusão que é o ponto chave do livro: o Brasil anda em círculos.
O colunista mostra como nossos presidentes têm características que se repetem ao longo dos anos, o que faz com que ele próprio vá perdendo a paciência com a política. O passar do tempo também acompanha o envelhecimento do narrador, que vai ficando confuso – começa a trocar o nome dos presidentes, justamente porque eles têm posturas parecidas quando sujeitos a pressões semelhantes. A grande sacada de Daniel e Octavio é traçar esses paralelos entre passagens e figuras da nossa história, construindo o caráter cômico do livro.
Collor promete varrer a corrupção do país, assim como Jânio Quadros. Jânio, por sua vez, era considerado doido, como Delfim Moreira. Delfim, na verdade, era vice e assume após a morte de Rodrigues Alves, como Sarney e o falecido Tancredo. FHC tem obsessão em controlar a inflação, como tentou Campos Salles. Jango é bom articulador, mas tem dificuldades de ler cenários políticos, como Washington Luís. Carlos Lacerda pragueja contra a criação de uma suposta república sindicalista na América Latina, como repetiu Cabo Daciolo. Lula tem o petróleo no coração, assim como Getúlio. O operário também representa alguém do povo no poder, como foi Nilo Peçanha. Bolsonaro vive em conflito com a imprensa e o STF, à la Floriano Peixoto. A operação Lava-Jato, composta por jovens idealistas que buscam combater as velhas práticas políticas, recorda o tenentismo (ou, como a coluna prefere, a Lava-República).
Destrinchar a história do Brasil é se ver num déjà-vu tão constante que chega a ser meio inexplicável. Por isso, o colunista tem o auxílio de uma vidente: Dona Cassandra. De tempos em tempos, ela invade a redação para dar pistas e dicas sobre o futuro – que ninguém leva a sério. O truque de usar a vidente para fazer revelações dos próximos anos serve para chamar a atenção do colunista (e do leitor) para fatos aparentemente pequenos, mas que se mostrarão importantes na hora certa. É ela, por exemplo, que apresenta a figura do ainda jovem e insignificante militar Eurico Gaspar Dutra, em 1904, durante a Revolta da Vacina. Esse mesmo jovem não só participaria das repressões aos levantes tenentistas nos anos 20 como também viria a se tornar presidente da República em 1946. (Não tão insignificante assim agora, né?). Mesmo com Cassandra tentando ajudar, ninguém acredita muito nela. Afinal, alguns aspectos da nossa história são mesmo inacreditáveis.
Apesar do livro ter a proposta de tratar os acontecimentos históricos em tom satírico, existem passagens que não cabem eufemismo. Como tratar uma ditadura com ironia? Como dar leveza a mortes, tortura e violação dos direitos humanos? O jeito mais honesto que os autores encontraram foi usar o que provavelmente teria acontecido caso a coluna fosse real. Tanto na ditadura do Estado Novo quanto na Ditadura Militar, nosso narrador foi censurado. Nos dias 11 de novembro de 1937 e 14 de dezembro de 1968, a redação recebeu visitas. Durante os períodos ditatoriais, as notas seguiram por caminhos diferentes: ou eram chapa-branca, mostrando que o colunista havia sido obrigado a se mostrar favorável ao regime, ou recriavam estratégias usadas pelos jornalistas da época para driblar a censura (como publicar poesia e mensagens subliminares). É também durante o Estado Novo que a vidente Cassandra é assassinada e, mesmo que sua morte seja um elemento de ficção, ela rememora o que foi o destino de pessoas reais. No fim do regime, em 1945, é publicada uma nota de falecimento em homenagem à vidente.
Mas, talvez, a verdadeira dicotomia presente nesses 130 anos seja a promessa de uma “nova política”. A República já nasce se considerando nova ao romper com um sistema imperial antiquado e corrupto. Desde 1889, temos um looping de presidentes jurando que em seus mandatos tudo será diferente, que nunca antes havia sido feito dessa forma. É um embate eterno entre uma suposta velha guarda e uma nova ordem, que, na prática, nunca existiu. Essa República Vale uma Nota mostra a sina da nossa história em encerrar os ciclos políticos com braços do próprio governo, fazendo com que tudo seja sempre um pouco mais do mesmo. “O ciclo de Dom Pedro II foi encerrado por seu ministro do Exército, Deodoro da Fonseca. O ciclo Washington Luís foi encerrado por seu ministro de Economia, Getúlio Vargas. O ciclo Vargas foi interrompido por seu ministro de Guerra, Eurico Gaspar Dutra. O ciclo Jango foi interrompido pelo seu chefe de Estado-Maior, Castelo Branco. Só falta o ciclo militar ser interrompido por alguém de seu braço político, a Arena, hoje PDS”, publica a coluna em 1985 – quase 100 anos após a Proclamação da inovadora República.
Octavio Guedes e Daniel Sousa conseguem fazer com que décadas passem voando. É uma leitura leve, mas que não deixa de apresentar elementos que nos ajudam a entender o passado, o presente e os caminhos que podemos trilhar no futuro. A forma das notinhas jornalísticas casa de forma surpreendente com o conteúdo, e os autores mostram que a nossa República é tão surreal que o humor se torna uma das armas mais eficazes para criticá-la. Como escreve a jornalista Maria Beltrão, no prefácio do livro assinado por ela, “para o pessimista que esbraveja que nunca o Brasil esteve tão mal ou para o otimista que tem certeza de que daqui pra frente tudo vai ser diferente, a fictícia coluna de jornal que nos reconta a história real de nossa República deixa a lição: já vimos esse filme antes (muitas vezes!) e ninguém (ou todo mundo) tem razão”.
O irônico colunista encara nossa repetitiva história ora com esperança, ora com descrença. E não há nada mais brasileiro do que isso.
ps.: O narrador, por fim, declara o óbito da coluna. Sua última notinha data de outubro de 2019. A causa da morte? A direção do jornal mandou o colunista criar um perfil nas redes sociais.
adorei! ta na minha lista de leitura
que texto incrível 😍