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Imprensa brasileira: branca e conivente. Flávia Lima, da Folha de São Paulo, revela os bastidores

Sophia Lyrio Hermanny


“Em meus vinte anos trabalhando em algumas das principais redações de São Paulo, o número de pessoas negras nunca chegou a preencher os dedos das duas mãos”, escreveu Flávia Lima, ombudsman negra da Folha de São Paulo. A falta de diversidade na imprensa foi escancarada após a insurreição gerada pela morte de George Floyd, momento intrigante em que brancos se reuniram no Brasil para debater sobre racismo. A partir disso, a ombudsman - função responsável por mediar os interesses entre o jornal e seu público-alvo - vislumbrou a oportunidade de ampliar essa discussão com maestria, da perspectiva de quem ocupa um duplo lugar de fala: negra e jornalista. O seu texto É só o começo, publicado na Revista Piauí, é uma leitura obrigatória para quem vai muito além de se interessar por pautas sociais. É, principalmente, para quem privilegia um olhar apurado, coerente e profundo acerca de uma questão familiar ao autor.


A cientista social, formada pela USP, e advogada pela Mackenzie, aposentou os seus diplomas e optou pelas redações. Atuante há 20 anos no meio jornalístico, Flávia Lima tem aplicado seu extenso repertório acadêmico em suas pautas. E o resultado? O exercício de um jornalismo crítico e de qualidade. Apesar disso, em entrevista à Revista Marie Claire, a atual ombudsman revelou que a qualidade do seu trabalho não foi empecilho para o preconceito: “Tenho consciência de que já causei surpresa ou incredulidade entre fontes ou colegas, não só por ser mulher, mas por ser uma mulher negra”. É esse recorte racial, portanto, que dá vida à sua matéria É só o começo. Assim como Flávia, outros jornalistas negros são subestimados profissionalmente, o que se manifesta na hegemonia branca da imprensa nacional. Esse cenário, felizmente, não passou despercebido a ela.

(Após receber críticas, GloboNews reúne somente jornalistas negros no programa Em pauta/Imagem: Reprodução)


Foi epifânica para Flávia a reunião de seis jornalistas negros, convidados para um debate na GloboNews. “Não um nem dois”, ressaltou. Esse foi o ponto de partida da reportagem, que fugiu ao senso comum, percorrendo caminhos pertinentes para aprofundar as questões raciais associadas à imprensa. Um dos aspectos interessantes foi estabelecer os EUA como um parâmetro, mas, atenção, não do modo usual: fanático e condicionado pela síndrome de vira-lata vigente no discurso brasileiro. Ela o fez com coerência, ressaltando que a recém abertura das redações para uma nova geração de negros resultou em reação social e cobertura midiática combativa no tocante ao racismo. Os diversos escândalos e processos que envolveram a mídia norte-americana após a morte de George Floyd não deixam escapar aos olhos: houve mudança. Ao rechear a reportagem com ilustrações desse rebuliço, a autora proporciona ao leitor uma compreensão mais sólida do que falta à imprensa brasileira.


Outra abordagem imprescindível ao entendimento do tema é a interpretação do racismo no âmbito nacional, algo que Flávia esmiuçou aos leitores, criticando veementemente as concepções tendenciosas do brasileiro médio. William Waack demonstrou, em entrevista à Folha, que discursos científicos, ainda que não se apliquem à realidade brasileira, são usados como respaldo para eufemizar o nosso racismo estrutural. A sua citação do livro O Progressista de Ontem e o do Amanhã, que propõe o retorno à discussão acerca da cidadania - ao invés das pautas identitárias - prova o ponto. Flávia rebateu ponderando que, no Brasil, a cidadania dos negros é violada constantemente, o que inviabiliza a centralidade dessa discussão. É primordial se contrapor aos discursos que seguem apagando a construção da identidade afro-brasileira, que ainda se recupera a lentos passos da sabotagem histórica a qual foi submetida. A jornalista, nesse sentido, provoca incisivamente o leitor com essa reflexão fundamental.


Por fim, a autora apresenta o questionamento: qual é a responsabilidade da imprensa brasileira no negligenciamento de casos análogos ao de George Floyd? Para isso, ela aborda o caso dos meninos de Costa Barros, em que 5 jovens negros foram comemorar a aquisição do primeiro salário em um parque e, na volta, foram metralhados por 111 tiros disparados pela Polícia Militar. Flávia chama a atenção do leitor para uma realidade cruel e urgente, através de dados, citações e um forte posicionamento. E questiona, também, para além disso: como foi construída, pela mídia, a imagem dos jovens negros e quais são os reflexos dela?


Em síntese, É só o começo é um texto contemplado por uma brilhante união: o talento profissional de Flávia Lima e sua vivência pessoal da questão racial. Esse é um material indispensável para quem anseia a viagem, muito frutífera, que é se deslocar para uma realidade que não compartilha e não conhece. Dar voz a pessoas negras é ampliar o panorama que nos é apresentado nos mais diversos âmbitos, algo que você, jornalista, nunca pode deixar de fazer.


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