O legado além dos livros: a produção em jornais deixada pelo ícone da literatura brasileira
Por Gabriel Porto
Em uma de suas crônicas para o Jornal do Brasil, Clarice Lispector reconta uma conversa que teve com um jornalista sobre as diferentes recepções que sua escrita tinha. Segundo ela, o homem observou que as mesmas pessoas que achavam seus livros difíceis também compreendiam perfeitamente seus textos em jornais – mesmo quando se tratava de temas pouco comunicáveis. Lispector respondeu: “O leitor de jornal, habituado a ler sem dificuldade o jornal, está predisposto a entender tudo. E isto simplesmente porque ‘jornal é para ser entendido’”.
Não é à toa que Clarice Lispector se consolidou como ícone da literatura brasileira: seus mergulhos introspectivos que partem do cotidiano encantam, até hoje, inúmeros leitores. Mas é comum que se esqueçam de um detalhe que diz muito sobre sua escrita: Lispector foi, por boa parte da vida, jornalista.
Antes de – e mesmo durante – seu sucesso literário, Lispector escreveu para veículos como o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil e a revista Manchete. Sua obra jornalística reúne entrevistas, ensaios de cunho político e até “colunas femininas” (como eram chamados textos de moda e culinária). A escolha de Lispector como redatora de tais temas pode causar estranhamento hoje, mas as expectativas daquele tempo sobre mulheres eram ainda mais restritas – ou restritivas – do que são hoje. Pioneira na imprensa, Lispector era uma das poucas mulheres na redação, quando não a única.
A escrita intimista que empregava por vezes fazia com que suas contribuições fossem desconsideradas. E é, no entanto, essa mesma escrita que permitia a criação de um jornalismo, no mínimo, curioso. Se em seu tempo já fugia ao padrão, Lispector jornalista oferece, ainda hoje, algumas lições. Lispector nunca deixou de enxergar a escrita como forma – para ela inevitável – de conexão consigo e com outras pessoas.
Por mais que sua produção jornalística fosse mais acessível, em termos de construção, um denominador comum do texto clariceano continua ali: a atenção ao eu, que é também atenção ao outro e ao mundo. Ela deixa isso claro em uma de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, quando diz: “É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha. Acho que se escrever sobre o problema da superprodução do café no Brasil terminarei sendo pessoal”.
Mas, além de seu quê de metafísica, suas publicações em jornais e revistas tinham motivações práticas: os textos assinados pela autora eram forma de sustento, especialmente após o divórcio com o pai de seus filhos, em 1959. O caráter financeiro de seu trabalho na imprensa chega a ser mencionado em uma das crônicas, presente em seu livro “A descoberta do mundo”, em que conta: “Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro”. Ela resume seu sentimento: “Sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma”.
Assim como sua vida pessoal, o período histórico em que viveu também definiu seus textos. A atividade jornalística de Lispector esteve presente da juventude aos anos finais da autora, entre as décadas de 40 e 70: um período, além de extenso, atravessado por numerosos tumultos históricos. Foi em meio ao processo de padronização da imprensa brasileira e à censura da ditadura militar que Lispector publicou seus posicionamentos – inclusive políticos – sem esquecer de sua sensibilidade.
Uma suposta isenção de Lispector chegou a ser criticada, como no episódio em que o cartunista Henfil a enterrou, em sua tira, por ser “alienada” e “ficar num mundo de flores e passarinhos, enquanto Cristo está sendo pregado na cruz”. No entanto, para a polícia política do governo militar a escritora estava longe da alienação: Lispector foi fichada pelo Serviço Nacional de Informações, em 1973. Para o SNI, seu desquite, sua participação na Passeata dos Cem Mil (maior ato popular contra a repressão militar, realizado em 1968) e seu texto em defesa dos estudantes politizados (publicado no jornal Última Hora, em janeiro do mesmo ano) eram motivos que a marcavam como subversiva.
Outra quebra dos padrões que a autora realizou em seu jornalismo está presente em suas entrevistas. Como entrevistadora, Lispector mantinha sua subjetividade, trazendo sempre a lembrança de que uma entrevista oferece, principalmente, um diálogo. Isso fica claro em sua entrevista com Vinícius de Moraes, em que ela pediu, em meio às perguntas, um favor: “Faça um poema agora mesmo”. Moraes atendeu ao pedido e a ofereceu um poema de dois versos: “Clarice / Lispector”. Ele se explicou: “Acho lindo seu nome”.
Fica claro, em suas entrevistas, que Lispector buscava não a neutralidade, mas, sim, uma forma de conexão com o entrevistado – que se traduzia também como conexão com o público. A escritora conseguia tornar-se presente nos textos, que tecia com as respostas que recebia junto de suas próprias percepções. É o caso da vez em que entrevistou a atriz Tônia Carrero, que perguntou a ela: “Você me parece hoje muito vaga. Que é que você tem, Clarice?” A entrevistadora, então no lugar de entrevistada, respondeu: “Não só estou vaga como de inteligência um pouco lenta. É porque não dormi esta noite”.
As marcas de pessoalidade do jornalismo clariceano, no entanto, não se resumem a mera transgressão. Sua vocalização em artigos, entrevistas e crônicas pode, ainda hoje, ser interpretada como uma sugestão à produção de textos jornalísticos. Porque Lispector sugeria o espaço do jornal além de seu lugar-comum: além de produto, ele pode ser produção. Mais que simples imposição, pode oferecer o diálogo – do repórter com a notícia, desta com o leitor e assim por diante.
“Escrever para um jornal é uma grande experiência que agora renovo, e ser jornalista, como fui e como sou hoje, é uma grande profissão. O contato com o outro ser através da palavra escrita é uma glória.” A reflexão, feita por Lispector em uma de suas crônicas, revela que a sensibilidade, a conexão e a paixão presentes em seus textos para jornais nunca foram obstáculos a serem superados. Foram – e são – fatores que possibilitaram aquilo de mais importante no seu jornalismo: a humanidade.