Memórias do histórico repórter brasileiro Samuel Wainer.
Por Tainá Junqueira
Razão de viver. Talvez essa seja a melhor definição do fazer jornalismo para jornalistas apaixonados pela profissão. Assim era para Samuel Wainer. Não apenas em fazer jornalismo, mas dar voz ao povo, falar de igual para igual, mudar a forma de se comunicar, era mudar as estruturas. O Última Hora, seu jornal, para além de um dos maiores jornais do Brasil nas décadas de 1950 e 1960, foi sua grande motivação, realização e razão de viver. Desde aí, as grandes realizações do país convergiam com a realização do próprio Samuel Wainer.
As aventuras como repórter, a trajetória até conseguir fundar seu próprio jornal, os altos e baixos na carreira de jornalista dos anos 1950 são narradas em seu livro de memórias: Minha razão de viver. Publicado pela primeira vez em 1987 pela editora Record, o livro é fruto de entrevistas e relatos de Samuel Wainer gravados em 53 fitas ao longo do ano de 1980. As gravações foram finalizadas dias antes de Wainer morrer e transcritas posteriormente por sua filha Pinky Wainer, pela ex-mulher Danuza Leão e editadas pelo jornalista Augusto Nunes. As memórias do repórter trazem uma mescla quase que indissociável da história de Samuel com a do Brasil, com os relatos de um jornalista e de um país. Nascido em 1912, Wainer viu os acontecimentos mais importantes do século XX, e talvez de toda história. A Revolução de 30, a Era Vargas, a repressão do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), as duas grandes guerras, a volta impressionante de Getúlio à presidência, seu suicídio, o Golpe Militar. Ele não apenas viu as mudanças na imprensa brasileira e as maneiras de fazer jornalismo como fez parte das transformações e da modernização da imprensa brasileira. Seus relatos são sinceros, de quem não apenas viu mas viveu a história.
De fato, jornalistas políticos, ativos e observadores são testemunhas não apenas dos grandes acontecimentos históricos, mas dos bastidores do poder, das relações e articulações que culminam em grandes decisões, das artimanhas políticas. Samuel Wainer conta a história não pelo olhar historiador dos grandes marcos, mas pelos jantares com presidente da república, um uísque com um grande empresário. A história do Brasil e do Homem se faz nos bares, na conversa cordial, nos encontros em quartos de hotéis no meio da madrugada, em telefonemas de poucas palavras. Conhecer a história política, social, econômica através de um jornalista como Wainer é conhecer uma história que jamais estará nos livros de história.
Dentre tantos eventos cruciais que testemunhou, Wainer foi o único jornalista sul-americano presente no julgamento dos generais de Hitler, em 1945, em Nuremberg, Alemanha. Em 1950, também foi o único a acompanhar os 51 dias de campanha eleitoral de Getúlio Vargas, a fim de conhecer o polêmico candidato que buscava a volta democrática ao poder e seus eleitores. “Uma das mais apaixonantes aventuras da minha vida”, definiu. Para ele, “a grande imprensa parecia decidida a silenciar os passos do ex-ditador”. Wainer testemunhou o amor e devoção que milhares de brasileiros tinham por Vargas. Em uma de suas reportagens, quando ainda trabalhava para os Diários Associados de Assis Chateaubriand, Samuel descreveu Getúlio como Gandhi brasileiro. “Não pediam terra, não pediam pão, pediam Getúlio.” Estar ao lado de Vargas, foi o pontapé inicial para poder, em menos de um ano, fundar seu jornal, nitidamente getulista, o Última Hora.
"Um jornal vibrante, uma arma do povo", esse era o slogan do Última Hora. Wainer conta aos detalhes os desafios e excitação na montagem da UH, como era chamado. Era preciso conseguir colunistas, repórteres, escritores, patrocinadores, rotativa, um uma sede da redação, capital inicial. Mas, o mais desafiador era conseguir um espaço na aristocracia da imprensa brasileira. “Eu sabia que fundar um jornal fora dos grupos oligárquicos que controlavam a imprensa significava desafiar um poder desumano, aético, monopolizador, absolutista (...) Eu era um estranho naquele mundo aristocrático, e eles fariam rigorosamente de tudo para expelir-me.” Samuel Wainer colocava em xeque as estruturas de poder da imprensa brasileira, dominada por poucas famílias que passavam os jornais de pai para filho. A imprensa brasileira, na realidade, era, naquela época, empresarial e norteada por negócios e interesses próprios. Desde o início, Wainer enfrentou um clima hostil e constantes manobras contra si e seu jornal. “Minha chegada ao clube, afinal, representava a queda de vários tabus - a começar pela minha origem de menino pobre do Bom Retiro. Outro tabu era que, no Brasil, ao contrário do que ocorre em países civilizados, o jornal era a voz do seu dono. Sempre foi assim, é assim ainda”, ele conta no livro.
No entanto, a Última Hora tentou quebrar esse monopólio do poder de fala apenas guiada pelos interesses de seus donos e buscou se nortear pelo interesse do povo. Nas palavras de Wainer: “A Última Hora representaria uma exceção a essa regra, na medida em que pretendia transformar-se na expressão do getulismo. Evidentemente, eu influiria na linha do jornal, mas ele não obedeceria exclusivamente a meus interesses, impulsos, ódios e amores”. Dessa forma, a Última Hora foi inovadora desde a relação entre repórteres e jornalistas da redação, até na modernização e na forma de se produzir o jornal, com novas editorias e matérias, lançando luz em questões silenciadas pela chamada grande imprensa. Com Getúlio no poder, Wainer criou a editoria “O dia do presidente” com informes diários e notícias sobre o dia a dia no Palácio do Catete e as novidades presidenciais, atraindo público e obrigando outros jornais a fazerem o mesmo. Criou também o chamado “Muro de Lamentações”, em que publicava na primeira página do segundo caderno reivindicações populares, denúncias e reclamações.
Em uma das investidas contra Wainer e o Última Hora, poderosos da imprensa, como Carlos Lacerda e Chateaubriand, passaram a questionar sua nacionalidade. No Brasil, a lei é que apenas brasileiros natos podem ser donos de jornais e a origem de Samuel era incerta, já que era filhos de imigrantes judeus, vindos da Bessarábia, ex-União Soviética, hoje Moldávia. Em 1953, Samuel chegou a ser preso por 1 ano após uma ardilosa CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que buscou caçar seu direito de dirigir o Última Hora. Na época, conseguiu a assinatura de 45 intelectuais afirmando que ele tinha nascido na rua da Glória, no Bom Retiro, em São Paulo. Apenas em 2005, 25 após sua morte, é que a verdade veio à tona: Samuel Wainer era bessarabiano. No entanto, ele sempre se considerou um dos maiores brasileiros e o nacionalismo era a principal bandeira que levantava: “Toda minha história posterior era a prova de que, além de ser um brasileiro, sempre amei este país”.
Última Hora rodou pela primeira vez em 12 de junho de 1951, com uma carta de Getúlio Vargas na primeira página em demonstração de seu apoio à UH. Ela fechou em 1971, quando faliu pelo cerco da censura na ditadura militar. Alcançou redações em diversas cidades de São Paulo, além de Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife e Curitiba. O jornal idealista de um repórter de Bom Retiro se tornou um dos mais lidos no país no início da década de 1960, chegando a marca de mais de 100 mil exemplares diários. Foi o único jornal expressivo a se posicionar abertamente contra o Golpe Militar de 1964 e a apoiar Jango até os últimos suspiros de seu governo.
Ler o livro dá a sensação de estar sentada em um sofá aconchegante com uma xícara de café num dia chuvoso ao lado de um amigo que lhe conta histórias de suas aventuras. É conhecer, de um outro ponto de vista, a história do país: dessa vez de dentro. É sentir-se num almoço com o próprio Getúlio, em ligação com Jango, em uma discussão com Assis Chateaubriand. Um livro que se lê de uma só vez, uma conversa com um amigo de uma tarde inteira. Leitura necessária e indicada para refletir sobre a forma de fazer jornalismo, olhar de maneira crítica a imprensa brasileira, poder deixar viver a memória de Samuel Wainer, como grande jornalista e, inspirado por ele, desenhar outros e novos futuros para o jornalismo e a comunicação.
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