Juliana Sorrenti
(Manifestantes tentam derrubar estátua equestre de Andrew Jackson, ex-presidente dos Estados Unidos escravagista. Foto: Tom Brenner/Reuters)
Existem momentos raros na história da humanidade em que o inimaginável acontece: conservadores e progressistas no mesmo lado da moeda. Em prol de um ideal comum, barreiras políticas antes intransponíveis são atravessadas e o militante vestido de vermelho da cabeça aos pés e o cinquentão com camisa da seleção agora falam a mesma língua. Na política, poucas coisas carregam um poder de união tão forte. Sem dúvidas, uma delas é a intocável liberdade de expressão. Ataques ao principal fundamento da democracia liberal podem fazer até mesmo os politizados mais fanáticos unirem-se à oposição para defendê-lo.
Em 2020, vivemos esses tempos inusitados. Enquanto o presidente Donald Trump discursa contra o totalitarismo da call-out culture (o movimento de justiça social nas redes), 150 intelectuais denunciam o silenciamento e intolerância generalizada em uma carta aberta publicada na revista Harper's. A partir da situação improvável, Miguel Lago – cientista político e co-fundador da rede Meu Rio e Nossas – mostra que a grande vilã da sociedade pode não ser a “cultura do cancelamento”.
Publicada na revista piauí, Derrubem as estátuas é um ponto fora da curva entre os artigos de opinião e reportagens sobre o assunto. Acusado de estimular o linchamento virtual e de provocar demissões injustas, o “cancelamento” é considerado um dos males da internet. Em oposição à massa de jornalistas e de colunistas que continuam a amplificar a demonização da prática, Lago preocupa-se em explicar o funcionamento das mídias sociais, o papel de influencers e de seguidores e o significado do perfil. Essa escolha balanceia aspectos negativos e positivos: ao invés de apenas associar o cancelamento com o empobrecimento e a radicalização do debate público, introduz a noção de que ele é uma ferramenta de autorregulação das redes, impedindo o crescimento de discursos de ódio.
“O cancelamento se origina e se encerra nas redes sociais”, escreve o cientista político. Como, então, explicar as mobilizações pró-liberdade de expressão que lutam contra um inimigo encarcerado pelas telas de smartphones? A resposta está na distinção entre três diferentes fenômenos que são colocados sob o guarda-chuva – nas palavras de Lago – do conceito de “cultura do cancelamento”. Assim, entre Trump’s supporters e progressistas, o termo torna-se cada vez mais genérico: estariam eles criticando a derrubada de estátuas, a demissão de pessoas acusadas de atos discriminatórios, ou o questionamento da legitimidade de certos intelectuais?
(Captura de tela da página do artigo na revista piauí)
Ao mesmo tempo em que explora cada um desses fenômenos, desde as razões que os motivam até as bases teóricas das críticas, Lago reflete que a generalização de movimentos tão distintos pode não ser ao acaso. Como lembrado por ele, a tática, inclusive, não é inédita, sobretudo no contexto brasileiro, no qual certos políticos frequentemente confundem pautas LGBT com a defesa de pedofilia e de zoofilia. A novidade é que agora a esquerda participa da estratégia. O que é chamado pelos brancos progressistas de revisionismo histórico, humilhação em praça pública e censura é apenas uma tentativa politicamente correta para silenciar minorias, que encontraram espaço na internet para serem ouvidas. Em meio a reportagens que suavizam o peso de comentários preconceituosos na internet, as palavras do cientista nos fazem refletir: por que apontamos o dedo para os que denunciam as injustiças e não para aqueles que as cometeram?
Ao utilizar exceção como regra e inocentar empresas preocupadas apenas com marketing, como no caso da demissão de Emmanuel Cafferty, reduz-se a importância dessas vozes, tanto tempo suprimidas pela opressão da grande mídia. Agora que as redes sociais possibilitaram a quebra da lógica do broadcast (de um para muitos), não se pode esperar que sejamos inertes diante de situações de desrespeito, sejam elas cometidas por famosos, como JK Rowling, ou por anônimos. Como Karl Popper, filósofo austro-britânico, teorizou no ano do fim da 2ª Guerra Mundial: “Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.
Assim, entre parágrafos de explicação e constatação de críticas rasas, Miguel Lago constrói uma defesa equilibrada da tão temida “cultura do cancelamento”. Apesar de não estar imune a julgamentos, momentos de contra resposta não deveriam ser tão duramente condenados por aqueles, que nascidos privilegiados, nunca poderiam entender as dores de quem já sofreu tanto nessa vida. Sobretudo, nós, jornalistas em formação, que buscamos dialogar entre fonte e público, não podemos usar da nossa autoridade para desmerecer a luta de pessoas que são oprimidas diariamente. Para aqueles que querem conhecer além de uma visão restrita sobre esse movimento que está revolucionando as redes, a leitura de Derrubem as estátuas é um manifesto em nome da cultura do outro, dos excluídos e dos marginalizados.
Link para a matéria: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/derrubem-as-estatuas/
Adorei a matéria!