Maneiras alternativas de relatar uma tragédia
- Pitacos
- 7 de abr.
- 3 min de leitura
Vozes de Tchernóbil conta a história do acidente nuclear ucraniano a partir do olhar das vítimas
Por Marcelo Faria
Apesar da carga emocional contida nas tramas, é impossível finalizar o livro sem respirar fundo e reconhecer a sua qualidade. Sobre os escritos de Svetlana Aleksiévitch, um pessimista diria que é o reflexo da nossa condenação, como espécie, ao sofrimento existencial; já um realista, que registros históricos desse cunho são imprescindíveis para o progresso civilizatório; e um otimista que, a despeito de toda a amargura, é um alento perceber que o amor sobrevive a qualquer catástrofe. Os três estariam corretos.
Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear, publicado em 1997, é a obra mais aclamada de Svetlana Aleksiévitch. Fruto de dez anos de pesquisas e entrevistas com vítimas do acidente nuclear de Chernobyl, o livro-reportagem tem como principal propósito dar voz aos afetados pela tragédia e repercutir os seus impactos nas comunidades locais. A autora, em vez de detalhar a fatalidade em si, opta por explorar a forma como o caráter dessas vítimas foi moldado a partir da desgraça. Propositalmente, pouco ou nenhum enfoque é dado à catástrofe em si; o elemento de reflexão é a história menos interessante do ponto de vista objetivo.

O método utilizado pela escritora é semelhante a uma sessão de psicanálise: pergunte ao interlocutor a respeito do tema em questão e deixe-o falar, sem interrupções, por quanto tempo achar necessário. As elaborações entregam, invariavelmente, relatos profundos que envolvem angústia, dor, perda, saudades ou a mistura de todos esses sentimentos. A miséria existencial do entrevistado evidencia-se, na maior parte dos casos, no exagero ao romantizar o passado, descrevendo de maneira idílica a sua vida pré-trauma. Em linhas gerais, as narrativas transcritas na bibliografia de Svetlana apresentam esse padrão.

A leitura é difícil e há a probabilidade do leitor se emocionar e sentir a necessidade de interrompê-la. A razão mais óbvia para isso é a combinação de tristeza e visceralidade encontrada em cada um dos monólogos: não há uma página que se folheie sem se dar conta da aflição que atravessa o cotidiano dos inúmeros ex-habitantes da cidade fantasma de Pripyat.
Além disso, a desconexão entre as narrativas pode ser incômoda. Os tópicos dos depoimentos não seguem uma ordem; quando um par de aspas se fecha, muda-se logo o assunto, abrindo espaço para a exposição de outra dor, que possui outras raízes.
Em determinados momentos, como relatos de mães sobre filhos ou de viúvas sobre maridos, surgem lampejos vorazes de amor nas memórias dos envolvidos. Ajudam a aliviar uma leitura tão pesada, mas podem aprofundar a dor dos leitores mais condolentes.
Há um fragmento de uma conversa… Agora me veio à lembrança. Alguém tentava me convencer: "Você não deve se esquecer de que isso que está na sua frente não é mais o seu marido, a pessoa que você ama, mas um elemento radioativo com alto poder de contaminação. Não seja suicida. Recobre a sensatez". Mas eu estava como louca: "Eu te amo! Eu te amo!" Enquanto ele dormia, eu sussurrava: “Eu te amo!”. Caminhava no pátio do hospital: "Eu te amo!". Levava a comadre: "Eu te amo!". Ficava me lembrando de como vivíamos antes, da nossa casa… Ele só dormia segurando a minha mão. Tinha esse hábito, pegar no sono segurando a minha mão. A noite toda.
Em adição a Vozes de Tchernóbil, Svetlana Aleksiévitch é autora do best-seller A guerra não tem rosto de mulher, que desafia o jeito convencional de contar a história das guerras e vocifera as tormentosas recordações das mulheres que combateram na Segunda Guerra Mundial. Seus outros livros traduzidos para o português são Meninos de Zinco, As Últimas Testemunhas e O fim do homem soviético. Em 2015, a jornalista foi premiada com o Prêmio Nobel de Literatura "pela sua escrita polifônica, monumento ao sofrimento e à coragem na nossa época".

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