Mulheres Perfeitas (2004) não chega nem perto da ironia do livro no qual se inspirou ou em qualquer crítica interessante para o movimento
Camila Sant’Anna
O filme de 2004 não foi o primeiro a adaptar o clássico de Ira Levin, Mulheres Perfeitas, mas infelizmente não chegou à excelência irônica da obra original e nem agradou ao público ou crítica. Na verdade, com uma média de 30% de aprovação (Rotten Tomatoes), The Stepford Wives é uma verdadeira aula sobre como não tratar a representatividade e o empoderamento feminino. Apesar disso, o filme tem suas partes boas, como o elenco de peso – Nicole Kidman, Glenn Close, Matthew Broderick e Christopher Walken – e algumas mensagens interessantes, mas seu saldo final é negativo e ligeiramente revoltante.
Logo de início, somos apresentados à Joanna Eberhart, uma dona de emissora e jornalista reconhecida por seu talento e liderança. Mas, como na grande maioria das obras que apresentam mulheres fortes, ela não consegue ser uma boa esposa ou mãe (segundo seu marido). Chegamos aí ao primeiro problema: por que, no cinema, as mulheres, em especial jornalistas, não conseguem sucesso em duas áreas de sua vida? Miranda Priestly, de O Diabo Veste Prada e Jules em Um Senhor Estagiário, são só alguns exemplos de como sempre somos expostas como “megeras” profissionais extremamente insatisfeitas com nossas vidas pessoais, apesar da realidade não refletir esse estereótipo. Penso que essa é a soma de dois projetos conservadores: o de desmoralizar jornalistas e, acima de tudo, o de desmoralizar mulheres. Agora, em Mulheres Perfeitas, que se propõe a ser um filme feminista, esse preconceito fica ainda mais marcante e é um verdadeiro desserviço às muitas lutas do movimento.
(Still do filme mostrando as esposas de Stepford / Imagem: Reprodução)
Bom, agora que já conhecemos a protagonista, suas dificuldades e defeitos, o filme faz sua primeira crítica realmente interessante. Apesar de Joanna ter sido apresentada como uma profissional de jornalismo muito engajada e bem-sucedida, ela é, após um erro, sumariamente demitida e tachada como louca. É verdade que essa situação já foi imposta a muitas mulheres que sentem que não podem cometer um erro ou serão fortemente criticadas e acusadas de loucura. Erros no jornalismo (em especial no ao vivo) são comuns, mas para as mulheres da profissão muitas vezes é mais difícil se reerguer depois de um deslize. Foi o caso do erro de português durante uma reportagem da Globo em setembro: apesar de não ter escrito o texto, a imagem que se reproduziu foi a da jornalista Renata Lo Prete, a associando com o erro.
De volta ao filme, Walter (o marido), decide que a família deve começar do zero em outra cidade, no subúrbio dos EUA. É aí que a história do filme começa a se desenrolar e conhecemos personagens como Claire e Mike, os aparentes líderes da vizinhança. Também identificamos os espaços comuns da cidade: O Clube dos Homens e o Spa das Mulheres. Mais uma vez, uma crítica interessante aos lugares, tanto físicos quanto sociais, que se esperam dos sexos.
Com o passar do tempo, Joanna e seus novos amigos, Roger e Bobbie, começam a desconfiar que há algo errado na cidade. As mulheres se comportam como verdadeiras donas do lar dos anos 50 e tudo parece perfeito demais para ser verdade, como uma propaganda real do American Way of Life. As mulheres são magras, loiras, ótimas donas de casa e, é claro, completamente submissas aos seus maridos. O problema é que, para o telespectador fica claro muito rapidamente o que está errado com a cidade, e a demora para decifrar o mistério por parte da protagonista fica cansativa e frustrante, ainda mais quando lembramos que ela é uma jornalista! Tendo o sucesso que ela teve na profissão, era de se esperar mais inteligência e capacidade de apuração. Há diversos momentos que o próprio filme deixa a expectativa de que Joanna está descobrindo o esquema de Stepford, só para logo depois deixar seu raciocínio totalmente de lado e seguir com sua saga para se tornar uma esposa e mão melhor.
Um dos ápices do filme acontece quando Roger vai com seu marido para o Clube dos Homens e, ao voltar de lá, parece outra pessoa. Antes um homem expansivo e alegre, ele parece rígido e “másculo”, no pior sentido da palavra. Achei aí um ponto pouco explorado pelo filme, mas de extrema importância: mesmo em sociedades que se dizem abertas para minorias, é exigido que esses “diferentes” se encaixem em alguma caixa. É o famoso: “Pode ser gay, mas não precisa ser afeminado”. É outro cuidado que jornalistas têm que ter ao escrever matérias sobre minorias: Estamos realmente descrevendo essa minoria como ela é, ou somente como nós esperamos que ela seja?
É só depois de perder seus dois amigos para o “padrão de Stepford”, que Joanna começa a descobrir que os maridos da cidade vem substituindo suas mulheres fortes e independentes por marionetes. E é justamente quando ela vai questioná-los no clube que um dos momentos mais bizarros do filme se desenrola: ela é cercada de homens, incluindo Walter e Mike, o aparente cérebro da operação, que a explicam o porquê e o funcionamento de seu projeto de dominação. Joanna fica, sim, extremamente decepcionada e irritada com seu marido, mas no final, o beija e aceita sem brigar se transformar em um robô. Novamente, como os roteiristas esperavam que o espectador, que aprendeu até agora que ela era uma mulher determinada e corajosa, teria uma posição passiva dessas?
Em uma das cenas finais todos os moradores “felizes” de Stepford estão em um baile. Enquanto Joanna dança com o Mike, seu marido entra em uma sala secreta e descobre que ao apertar botões sem sentido em uma tela, ele pode “desligar” as mulheres perfeitas e as devolver ao seu estado normal. O primeiro problema é simplesmente um furo de roteiro. Previamente, o que entendemos é que o corpo das mulheres é substituído por um de robô (enquanto seus corpos ficam largados em algum lugar?). Mas, quando Walter desliga a programação, as mulheres voltam ao normal no lugar em que estavam, dando a entender que elas permaneciam no mesmo corpo, só não no comando.
Outro problema é o da representatividade. Novamente, em um filme que se propõe a tocar em temas sérios e feministas, por que é o marido que resolve todo o problema (sendo que, pouco tempo antes, ele aceitou transformar sua mulher em uma marionete) enquanto Joanna simplesmente dança e seduz Mike com seus “atributos femininos”? Tudo bem, descobrimos depois que Walter mudou de ideia e não manipulou e mudou sua esposa, o que não faz muita diferença, visto que ela não faz nada além de fazer “a grande descoberta” do filme (com muitas aspas).
A partir daí a temática da obra desanda completamente. Quando Joanna nocauteia Mike, sua cabeça cai e descobrimos que ele, o cérebro de toda a dominação masculina, era, na verdade, um robô também (e dessa vez um robô mesmo). Entra em cena então Claire, desesperada porque mataram seu marido, mas não surpresa. Minha descrença não foi o suficiente para impedir o que estava prestes a acontecer: na verdade, quem estava impondo esse terror todo nas mulheres e tinha programado o sistema que o permitiria era a personagem de Glenn Close.
Em um filme que tinha um potencial enorme para criticar o machismo e como as expectativas de comportamento sobre as mulheres são nocivas tanto para elas quanto para os homens, a vilã é uma mulher de coração partido? A história é que Claire pegou seu marido na cama com a amante, assassinou os dois num rompante de loucura (irônico, não?) e decidiu que faria com que todas as mulheres e, segundo a própria, eventualmente os homens agissem como nos “bons velhos tempos”. Não se trata mais de uma sociedade machista e opressora, e sim de uma mulher que é o exemplo de todos os estereótipos possíveis impostos às mulheres: louca, obsessiva por seu marido e inimiga do próprio sexo.
Após a vilã morrer eletrocutada por seu próprio marido-robô, pulamos para o futuro, que mostra Joanna e seus dois amigos felizes e cheios de sucesso por conta de projetos ligados a Stepford, enquanto aprenderam a lidar com suas vidas pessoais. Ao mesmo tempo, a “punição” encontrada para os maridos que robotizaram suas esposas é... ir ao mercado. Não acho que preciso comentar isso, né?
Fato é que As mulheres de Stepford realmente pode ser uma ótima aula para alunos de jornalismo, e por isso o recomendo como exemplo a não se seguir. É o que nós mulheres já estamos quase acostumadas: um filme (série, matéria, documentário, o que quer que seja) que se abre para pautas feministas, mas é dirigido e roteirizado por homens. Não que homens não possam ser aliados ou escreverem sobre assuntos feministas! Mas é preciso que se tenha cuidado, em especial no jornalismo, com lugar de fala e com o quanto estamos dispostos a desistir da obrigatória representatividade por qualquer que seja o motivo.
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