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O Dano Colateral na vida dos brasileiros

Ana Lourdes Grossi


Quando um brasileiro olha para o passado de seu país, percebe a participação decisiva das Forças Armadas em eventos como a Proclamação da República e a implementação da ditadura depois do golpe de Estado de 1964. A leitura do livro-reportagem Dano Colateral: intervenção dos militares na segurança pública, da jornalista Natalia Viana, mostra, a partir de diversas análises, por que dar tanto espaço aos militares na segurança pública talvez não seja tão positivo quanto uma parte da população pensa.


Capa do Livro/Imagem: Reprodução - Editora Objetiva


Natalia inicia sua obra com casos. Situações reais em que o trabalho das Forças Armadas não foi apenas insuficiente, como causou mortes. Por meio de uma apuração completa e detalhada, a jornalista nos instiga a conhecer mais a história e a legislação do Brasil, para perceber como diversos problemas contemporâneos, mais especificamente na relação civil-militar, são muito mais difíceis de serem resolvidos do que aparentam.


Logo no começo, o livro nos apresenta a lei das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que acompanha o leitor durante praticamente o livro inteiro. A lei dá aos militares permissão para intervirem na segurança pública apenas em caso de GLO, que deve ser autorizada pelo(a) presidente da República. As operações de GLO ganharam força no Brasil a partir da missão das Nações Unidas para estabilização do Haiti – com a participação do Brasil e de países como Japão, Argentina e Uruguai. Sobre a missão no Haiti, Natalia Viana escreve: “A narrativa de sucesso no Haiti foi usada, internamente, para impulsionar o uso de operações GLO, segundo o pesquisador Christoph Harig”.



Imagem: Reprodução - Forças Terrestres


A Minustah – operação no Haiti – de fato impactou toda uma geração de militares brasileiros e modificou o modo como as GLOs eram feitas. No entanto, ela não foi exatamente bem sucedida como o governo pregava. As tropas brasileiras foram acusadas de serem violentas. As acusações foram ignoradas e a narrativa de sucesso se manteve.


Foi a partir daí que as GLOs ganharam força. Tornou-se mais comum a interferência dos militares na segurança pública. Apenas entre 2010 e 2016, foram 35 operações de Garantia da Lei e da Ordem. Entre elas, as dos complexos do Alemão e da Maré. Mas o livro de Natalia Viana destaca os danos colaterais dessas operações, ou seja, as mortes dos civis inocentes provocadas por militares em operação.


Os leitores acompanham mais de um caso por vez e, em todos eles, ficam evidentes a injustiça e a negligência com as vítimas e seus entes queridos. Na maioria dos casos retratados, os assassinatos foram realizados por militares que alegaram ter confundido as vítimas com bandidos. Além disso, a justiça raramente é feita, pois grande parte desses militares são inocentados por legítima defesa, ainda que não existam provas de que houve risco de vida para eles na ocasião.

A autora recorre a numerosas análises acadêmicas para aprofundar o debate sobre a violência policial e o impacto disso na vida da população:


“A antropóloga Carolina C. Grillo, em sua tese de doutoramento, constatou que jovens excluídos da cidadania, sobretudo homens, são as principais vítimas e autores dos crimes violentos. Ela argumenta que ‘estes jovens constituem os tipos sociais potencialmente perigosos sobre os quais a ‘sujeição criminal’ recai’”.

O conjunto de injustiças narradas no livro provoca um sentimento de angústia em quem está lendo as diversas atrocidades resultantes da violência em operações militares – assim como já provocou em ativistas de movimentos sociais, políticos mais aliados à esquerda e defensores públicos daqueles brutalmente calados por militares e pela sociedade de modo geral.


O livro se aprofunda na GLO realizada na favela da Maré, por entender que aquela operação foi a mais delicada e perigosa. Natália detalha o contexto territorial e histórico do tráfico na região, o que facilita a compreensão do leitor sobre a temática – é válido destacar que essa grande contextualização não é a primeira nem a última feita no livro.



Imagem: Reprodução - Blog da Boitempo


Em meio à investigação sobre o caso da Maré, os leitores são apresentados também à visão de ex-militares, reservistas e familiares de militares assassinados em combate, como o caso de Michel Mikami, o primeiro soldado a morrer em uma GLO. Sua morte, que aconteceu a apenas cinco dias de concluir seu serviço, não abalou apenas sua família, como também seu superior na operação, o cabo William Carlos Teixeira. O último até mesmo abandonou seu posto temporário de cabo, sem receber apoio psicológico do Exército, pelo abalo sofrido ao ver o amigo assassinado na sua frente.


O livro também traz opiniões de políticos atuantes em vários governos. Foi nos mandatos de Lula e Dilma que as GLOs tiveram um grande crescimento, e é fundamental analisar a postura de outros partidos e governos a respeito dessa questão. O governo Temer recebe um grande espaço no livro, que abrange desde o processo do impeachment de Dilma, quando ele se tornou presidente, até o fim de seu mandato. Depois disso, o livro aborda a eleição de Jair Bolsonaro e a pandemia. Natalia nos conduz até os fatos próximos da data de publicação do livro: 21 de julho de 2021 e afirma que “o próximo capítulo dessa história ainda está por ser escrito”.


A obra de Natalia Viana é, com certeza, uma obra-prima que deve seguir de exemplo e estudo para as futuras gerações de jornalistas. Com uma apuração cuidadosa e abrangente, que reúne diversas perspectivas e relatos­­­, a autora incentiva o leitor a sair de sua posição leiga e refletir criticamente a respeito da intervenção dos militares na segurança pública brasileira.


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