Bernardo Bruno
Considerado apenas como mais um cineasta comercial no início do século passado, nos dias atuais, Howard Hawks já figura nas listas de maiores diretores de todos os tempos. Muito disso se deve ao trabalho de críticos da Cahiers du Cinéma, revista de cinema francesa, como Jacques Rivette e Godard, que enxergavam os traços autorais mais marcantes nos filmes mais comerciais . Atualmente, uma obra como Jejum de Amor faz parte do cânone dos melhores filmes sobre jornalismo. É nesse contexto que convém analisar o longa de 1940. Estrelando Cary Grant e Rosalind Russell como a dupla de protagonistas, a comédia romântica inspirada na peça The Front Page narra a história da jornalista Hildy. Um dia, ela visita a redação do jornal chefiada por seu ex-marido, Walter Burns, para informá-lo que pretende se casar novamente e largar de vez o jornalismo. No entanto, o personagem vivido maravilhosamente por Cary Grant não aceita facilmente a despedida da personagem de Russell. Ele tenta ao máximo impedir que a ex-parceira vá embora, criando assim diversas tramas e confusões na tentativa de seduzir Hildy de volta para o jornalismo.
(Pôster do filme / Imagem: Reprodução)
Apesar de ser um filme sobre jornalismo e seus aspectos mais românticos, aventureiros e atraentes, Jejum de Amor pode também ser interpretado como uma crítica feroz à forma mais baixa e aproveitadora existente do exercício desta profissão. Hawks está interessado em mostrar tudo o que ainda sustenta o jornalismo atual, onde se faz tudo por um furo de reportagem. Desde a utilização de todos os meios chantagistas e ilegais, por meio dos quais Walter consegue uma reportagem inédita, até as adaptações que Hildy imprime a sua entrevista a fim de atingir suas intenções políticas com o artigo. Quase tudo em His Girl Friday (título original da obra) apresenta segundas intenções, seja nas mais fúteis interações entre Hildy e Walter, seja no enforcamento do assassino que tem relação direta com os anseios políticos de um governador que quer se reeleger.
Mas mesmo com toda a crítica ao meio jornalístico, toda a obra se dedica a um dilema da personagem vivida por Rosalind Russell, que envolve a paixão pela profissão: criar raízes, casar e viver o sonho americano ou seguir a agitada e instável carreira jornalística? O conflito do filme é resumido em um único plano de maneira genial, por meio de várias ações ocorrendo ao mesmo tempo. Em uma cena, Hildy está datilografando na máquina de escrever, enquanto Walter fala ao telefone e Bruce discute sobre o casamento. Porém, apesar da obra ter seus exageros e caricaturas comuns ao gênero, o longa traz também uma representação realista e até pessimista da vida de repórter e redator. Segundo as próprias palavras de Hildy: “Sei tudo sobre repórteres, um bando de tontos correndo por aí sem um tostão e para quê? Você não sabe o que é querer ser respeitável e ter uma vida mais ou menos normal.” A questão aqui é que a própria Hildy assim como muitos outros jornalistas da vida real preferem essa anormalidade e instabilidade mesmo que com seus diversos aspectos negativos.
(Cena do conflito entre Hildy, Bruce e Walter / Imagem: Reprodução)
No entanto, o mais impactante no longa estadunidense de 1940 é como ele consegue definir muito bem o atual momento de desinformação e acelerado fluxo de notícias, graças à intensa exposição midiática, mesmo que comentando sobre o jornalismo da época. Hawks incorpora todo esse dinamismo presente nos jornais e nas notícias na unidade formal da obra: os diálogos se sobrepõem e se completam, mudando a realidade dos fatos e o que é entendido nas conversas. O longa-metragem ficou conhecido inclusive por ter uma velocidade dos diálogos fora do comum, todos os atores estão praticamente cuspindo suas falas e às vezes é até difícil acompanhar tudo o que acontece em um mesmo plano. Voltando à cena em que Hildy está digitando na máquina de escrever, cada personagem parece estar em um lugar diferente ao mesmo tempo que todos estão reunidos no mesmo espaço. Cada protagonista fala de um assunto diferente e ninguém se ouve, o diálogo vira um emaranhado de palavras e frases se interceptando, a risada é inevitável em meio ao absurdo da situação.
Ainda contribuindo para a agilidade do filme, as performances de Cary Grant e Rosalind Russell constantemente se renovam e revelam novas camadas. Se em Levada da Breca (1938) (também de Hawks com Cary Grant), o personagem de Grant tinha seu mundo estável e em ordem abalado pela personagem de Katharine Hepburn, em Jejum de Amor o próprio personagem de Grant desestabiliza a vida de Russell, ao mesmo tempo que a resgata da vida estável e sem emoções do sonho americano, através das características fascinantes (e degradantes) do mundo jornalístico. Inclusive, ambas as obras fazem parte do subgênero de comédia americana Screwball Comedy, um gênero de comédia que ocorrem situações inesperadas. Esse foi apenas um dos vários gêneros que Howard Hawks dominou durante sua vasta carreira.
Antes de Bauman teorizar sobre a modernidade líquida e explicar como em nossa atual sociedade tudo é rapidamente obsoleto, ultrapassado e renovável, o realizador norte-americano já tentava conceber sob forma fílmica a sensação que temos hoje em dia na era da hiper-informação. É impressionante como um filme dos anos 40 consegue nos passar toda a ansiedade e tensão gerada pelo rápido fluxo de informações que chegam a nos sufocar hoje. O diferencial em Jejum de Amor é o senso de humor, se não fosse pela risada constante gerada pelas performances frenéticas de Grant e Russell, a narrativa seria até meio tensa e trágica.
É esse timing cômico e narrativo certeiro de Howard Hawks que nos conquista e nos aprisiona no filme por uma hora e meia. O diretor não tem medo do absurdo e conduz com maestria essa narrativa que vai crescendo aos poucos e evoluindo, como descreve o crítico e cineasta francês Jacques Rivette: “Hawks sabe melhor que qualquer outro que a arte deve ir aos extremos, mesmo os extremos da sordidez, porque essa é a fonte de comédia. Ele nunca teme usar bizarras guinadas narrativas, uma vez estabelecendo que elas são possíveis. Ele não tenta confundir as inclinações vulgares do espectador; ele as afirma ao levá-las um passo adiante”. E é impressionante que esse elemento rítmico seja alcançado pelos planos longos e mais distantes com poucos cortes que valorizam o diálogo e as performances. São poucas as cenas em que a edição ou os movimentos de câmera se aceleram para demonstrar esse ritmo ágil. Hawks se garante com aqueles atores e com aquele roteiro, logo o resultado não poderia ser outro além de uma obra-prima do cinema.
Ficou muito bom! Já quero assistir ao filme!
Excelente, Bernardo! Não conhecia o filme, mas fiquei com muita vontade de assistir!