O que um carregador de malas que nunca voou, a estátua de um conde esquecido e uma mulher “louca” por democracia tem em comum?
Eliabe Figueiredo
A resposta nós encontramos na obra de Eliane Brum. O livro A vida que ninguém vê é composto por 21 pequenas crônicas-reportagens que se derivou de uma coluna em que a jornalista assinou no jornal Zero Hora, em 1999, por quase 11 meses na edição de sábado. O mesmo também foi vencedor do Prêmio Jabuti 2007 – um dos mais importantes prêmios de literatura do país – como Melhor Livro de Reportagem.
Capa do livro (Imagem: Reprodução)
Eliane traz um texto carregado de sentimento e trata cada caso relatado com muita delicadeza, o que aguça demais a sensibilidade do leitor. A ideia central da coluna era mostrar a existência de histórias em situações corriqueiras e na vida de pessoas comuns de Porto Alegre, evidenciando as belezas simples da vida, mas sem esconder a dor daqueles que, com a agitação do cotidiano, passam despercebidos. Mostrar detalhes que se escondem no imaginário coletivo e tornam-se invisíveis aos olhos. Brum dá significados profundos a tais personagens, nos dando o exercício de (re)ver o que passa batido.
Um grande exemplo é o trecho da crônica intitulada Enterro de pobre, que diz:
Não há nada mais triste do que enterro de pobre porque não há nada pior do que morrer de favor.
A beleza do livro se dá pela forma como a escritora torna o texto tão intenso enquanto relata o extraordinário dessas vidas anônimas. Com uma narrativa agridoce, ela desperta em quem experimenta a leitura um sentimento de que existe salvação, só é preciso refinar o olhar, mas sem deixar um efeito de resignação ou revolta.
[…] uma frase só existe quando é a extensão em letras da alma de quem a diz.
E Eliane diz. Com toda humanidade possível.
Acredito que esse seja o tipo de livro que todo estudante de jornalismo deve ter na sua coleção. Em primeiro lugar, porque Eliane Brum, com sua escrita única, nos ensina que dentro de uma reportagem dolorosa, há espaço para o “sentir” e que junto com a matéria feliz, podemos compartilhar. E dentro da profissão, isso é o que nós mais fazemos. E em segundo lugar, a relevância do trabalho jornalístico nessas situações. Em uma sociedade onde a desnaturalização de pessoas, momentos e vidas é comum, ter alguém que realmente o enxerga, faz transbordar a sensação de esperança.
O livro conta sobre um doce senhor com sorriso amável, mas que por trás do branco de seus dentes há muita dor, um chorador de uma cidadezinha que em todos os enterros – até de desconhecidos – chora incontrolavelmente pelo defunto. Fala também de um menino que, por conta de um acidente, perdeu sua inocência e descobriu que havia nascido em uma cidade partida, e seu lado era o errado. Era o alto. Era o morro.
Não foi a fatalidade que encarcerou o menino. Foi o lado errado.
Assim como muitas outras figuras, Eliane os humaniza e junto com eles, nós também. O único fato que separa nossas realidades é o pouco de sorte por ter nascido no lado certo. O mínimo que pode ser feito é agradecer pela oportunidade.
(Imagem livre de direitos)
Mas nem só de tragédia vive o homem. Encontramos histórias de superação, como a de um rapaz de 29 anos que ingressou na escola graças à ternura do olhar de uma professora. Histórias de realização, assim como a daquele carregador de malas que conseguiu, finalmente, voar. E também de humor, como o relato do anunciante de loteria que tinha uma voz grave e virou o terror de alunos de um pré-vestibular.
A vida que ninguém vê é tudo aquilo que está camuflado no meio da cena principal e se torna secundário. São os detalhes que já estamos tão acostumados, que já desgastaram tanto nossa visão que perdem valor, exemplo de um morador de rua. Eliane conseguiu enxergar fatos fascinantes nessas vidas desconhecidas e ainda foi capaz de nos tocar e encantar. Ela nos faz pensar em tudo que perdemos ao fechar os olhos. A ela, agradeço por essa preciosidade. E assim como Marcelo Rech finaliza o prefácio do livro, assim finalizo esse texto.
Boa viagem pela vida.
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