Maria Morena Gomes
Imagem: Reprodução/Companhia das Letras
A jornalista bielorrussa Svetlana Alekseievitch, vencedora do prêmio Nobel de Literatura por “A guerra não tem rosto de mulher” (2015), publicou em 2013 o livro “O fim do Homem Soviético”. As 600 páginas reúnem relatos recolhidos de 1991 a 2012 sobre a vida comunista, seus amores e desilusões. São histórias contadas por idosos figurões do Partido até jovens padres ortodoxos, que configuram uma mistura de sentimentos e percepções sobre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a Perestroika e o início apressado do capitalismo.
O livro se divide em duas partes principais. A primeira, intitulada “O apocalipse como consolação”, traz relatos de pessoas nascidas na antiga União Soviética que sofreram o absoluto horror de ver a única forma de vida que conheciam ruir. Dentre as narrativas iniciais, Svetlana narra conversas de mesa de bar, nas quais o amor pela pátria fica claro com frases como “Para mim a questão é mais concreta: onde eu quero viver, num país grande ou num país normal?”, e ainda “Como eu invejo as pessoas que tinham um ideal! Nós agora vivemos sem isso. Quero uma Rússia grande! Eu não me lembro dela, mas sei que existiu”.
Nesses conflitos de narrativa a jornalista pauta seus relatos, sejam eles entre familiares de diferentes gerações ou com melhores amigos de infância. Com uma linha cronológica definida logo nas primeiras páginas, as narrativas contam a história da URSS, desde a ascensão de Stálin, até a guerra e o fim do comunismo. Todos os relatos contam com fortes emoções, que apontam para a força dos ideais. A liberdade, no seu conceito abstrato, é o que todos acreditavam ter antes, durante e depois do império, mas do que muitos desacreditaram ao perceber que a Perestroika apenas trazia mais do mesmo controle, porém, agora, pelo dinheiro.
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A narradora conta, por exemplo, as histórias de duas melhores amigas de faculdade, Ielena Iúrievna e Anna Ilínitchna, e suas versões completamente diferentes do Partido e da Perestroika. Enquanto Ielena afirma ainda ser soviética e demonstra sua decepção com os políticos comunistas, que se venderam ao capitalismo, Anna traz um sentimento de conforto no suposto fim do romantismo e ingenuidade em volta dos ideais soviéticos. Outra história é a de uma mãe que viu a virada do capitalismo, mas ainda assim criou seu filho ao modo soviético, com apostilas do Partido, música clássica e muitas histórias de guerra. Seu menino, Igor, cresceu com um único sonho: o de ir à guerra e morrer como herói. Decepcionado por viver em uma Rússia capitalista, Igor se suicida aos catorze anos, e a mãe começa a jurar que consegue vê-lo pela casa.
Com um alto funcionário do governo, cujo nome não é revelado, a jornalista consegue uma exclusiva de como era a vida dentro do Kremlin, complexo fortificado na capital. Ele narra que a verdade na época da União Soviética era paradoxal. Os governantes tinham várias percepções, mas o povo só tinha uma, a que beneficiava os interesses políticos do império. Ele diz ainda que muitos dos políticos tinham casas enormes no campo com materiais importados pelo governo: “A história é a vida das ideias. Não são as pessoas que escrevem, é o tempo que escreve. E a verdade humana é um prego em que cada um pendura o seu próprio chapéu.”
A segunda parte do livro, intitulada “A fascinação do vazio”, conta, sempre por meio dos relatos, a decepção com a Perestroika e o início de um novo nacionalismo russo, representado no imaginário dos ex-soviéticos pela figura de Vladimir Pútin. A queda do comunismo, marcada no sentimentalismo das pessoas pela perda dos ideais, abriu espaço para a tomada da Igreja Católica Ortodoxa. Os heróis da guerra ficaram miseráveis, os professores universitários perderam o respeito da população, os pequenos burgueses ascenderam. Muitos não sabiam como usar o dinheiro, o que fazer com ele. Dentre os relatos, uma ex-funcionária do Partido, por convicção no ideal comunista, guarda todas as carteirinhas que lhe foram devolvidas durante a Perestroika.
Os relatos finais explicitam a fragmentação das antigas repúblicas soviéticas, com o nacionalismo russo hostilizando outros povos, como os armênios, lituanos e cazaques. A jornalista conta como conseguiu contato com refugiados ilegais e, quando finalmente os visita, percebe as condições desumanas em que estão vivendo, num subsolo. Ao perguntar a um dos moradores armênios como é viver ali, ele relata que sofre ataques todos os dias e que faz trabalhos braçais para sobreviver. Conta que toda semana o número de pessoas que ali vivem diminui, pois são mortos na rua por terem o nariz diferente.
Na sombra do nacionalismo exacerbado russo e das rivalidades entre os países que compunham a União Soviética, o livro termina sem percebermos. Os relatos, junto às quase escassas anotações de Svetlana Aleksiévitch, prendem a nossa atenção por partirem de pessoas comuns, que vivem vidas comuns, no meio dos entulhos do que um dia foi um grande império. São impactantes, sobretudo, por apresentarem percepções dos mais diversos lados da história. Por isso mesmo, se complementam e entrelaçam, narrando a construção e destruição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
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