Bernardo Bruno
Abril de 1938. É lançada a primeira edição da revista em quadrinhos Action Comics. Nela, um alienígena que se escondia na sociedade como um jornalista, na realidade era um herói com super poderes que combatia o crime da cidade de Metrópolis. O mundo num clima de tensão que precede uma guerra mundial, vê no Super-Homem a esperança e os ideais de um mundo melhor, onde todos vivem em paz e a moral prevalece. Agora, imaginem se o mundo realmente comprasse essa utopia, como seriam esses super-heróis dos quadrinhos na vida real? Um mundo com guerras, disputas políticas, violência e bombas atômicas. Essa é a proposta de uma das mais aclamadas histórias em quadrinhos de todos os tempos, Watchmen.
A obra-prima da nona arte roteirizada por Alan Moore, um dos quadrinistas mais renomados e polêmicos de todos os tempos, ilustrada por Dave Gibbons e colorizada por John Higgins mudou para sempre a maneira como se escreve uma história em quadrinhos. Primeiro, por trazer uma proposta mais adulta para um grande público, afastando-se da ideia de que quadrinhos seriam uma mídia para crianças e adolescentes, e depois por popularizar o formato das graphic novels (ou romance gráfico). São as histórias em quadrinhos fora das revistinhas, quadrinhos vendidos e pensados como livros fechados que tem início, meio e fim.
A publicação fez tanto sucesso que virou um filme em 2009 e uma série da HBO premiada com um Emmy de melhor minissérie de 2019. O seriado não adapta diretamente a obra original, apesar de se passar no mesmo universo dos quadrinhos. Entretanto, a obra televisiva consegue passar a sensação das páginas da HQ muito melhor que o filme de Zack Snyder, que adapta muito literalmente a história original e ignora muitas das ironias e sutilezas políticas originais. Muitos fãs do filme inclusive criticaram a HBO por ser “política demais”, mas será que o universo de Moore-Gibbons-Higgins já não era tão político, ou até mais que a série de televisão?
(Da esquerda para a direita: Espectral, Dr. Manhattan, Coruja, Comediante, Ozymandias e Rorschach / Imagem: DC Comics)
Watchmen acompanha diversos mascarados que foram forçados a se aposentar após uma lei que proíbe os vigilantes com identidade secreta. No entanto, esses ícones do “heroísmo” de Nova Iorque devem voltar à ativa, mesmo na ilegalidade, após o início de uma série de misteriosos assassinatos. A HQ, publicada entre 1986 e 1987, tem como conceito principal o de reformular a história e o imaginário norte-americano a partir da figura do mascarado. No mundo de Watchmen, os EUA ganham a Guerra do Vietnã, Nixon continua como presidente até o final dos anos 80, o Dr. Manhattan, um super-herói que é quase Deus serve aos interesses bélicos americanos, a guerra fria apenas continua a se tensionar e o apocalipse é cada vez mais próximo. A história é inclusive dividida em 12 capítulos, assim como um relógio do apocalipse com 12 horas e a cada capítulo os ponteiros vão se aproximando da meia-noite, ou o fim do mundo.
Alan Moore, com comentários políticos e sociais afiados como sempre, imagina uma sociedade americana neofascista e distópica que se utiliza dos super-heróis como agentes diretos do imperialismo. Já que na vida real, os heróis da Marvel e DC, como Capitão América e Super-Homem são agentes indiretos, por servirem como propaganda dos ideais estadunidenses. Logo, a crítica de Moore é encaminhada justamente para o próprio tipo de história que ele escreve, de super-heróis. Tanto que o conceito original de Watchmen tinha como protagonistas os próprios personagens da DC Comics, editora que publicou a obra.
No final das contas, Moore e Gibbons criam uma obra quase megalomaníaca, com grandes pretensões e que critica diversos aspectos da modernidade de maneira cirúrgica. Muito disso se deve à genialidade de Gibbons na criação dos painéis; o desenhista inova a linguagem por usar um modelo incomum de página em nove quadros em quase toda a obra. Existe toda uma simetria e geometria muito poderosa na obra, tanto que quando ocorre uma quebra desses modelos visuais, o impacto é sentido. Além disso, a graphic novel é repleta de rimas visuais (as carinhas felizes, os relógios, o sangue escorrendo, as capas dos capítulos), de simbolismo, técnicas cinematográficas de composição (como se tivesssem “zooms” e transições nas páginas) e uma narrativa que intercala vários núcleos ao mesmo tempo.
(Página mostrando a disposição em nove quadros e a inovadora narrativa não linear com diversos acontecimentos simultâneos / Imagem: DC Comics)
(Primeira página do livro com o icônico smiley face, o sangue escorrendo e o “zoom out” presentes na composição / Imagem: DC Comics)
No entanto, um dos diversos temas tratados durante a história é o jornalismo, a mídia e a construção de um imaginário popular através dos meios de comunicação. Um dos principais comentários acerca da mídia na graphic novel consiste nas interações de um jornaleiro e um leitor de histórias em quadrinhos. O jornaleiro sempre comentando as notícias apocalípticas e sensacionalistas do momento e o garoto sempre alheio a essas informações lendo uma história brutal, para que possa fugir da realidade — também brutal. Um comentário metalinguístico direcionado a nós leitores da história em quadrinhos, que inevitavelmente somos todos em um certo ponto, alienados.
Já em relação aos meios de comunicação, o jornal de maior destaque no universo de Watchmen é o New Frontiersman. Um jornal ficcional de extrema-direita que sobrevive de sensacionalismo, patriotismo e teorias da conspiração baseadas em uma narrativa globalista que seria supostamente contra a direita. E tudo bem que o livro foi gestado no meio da era Reagan, quando a extrema-direita estava em crescimento mundial, mas é impressionante como Moore parece ter previsto certas características da mídia direitista contemporânea.
A descrição do New Frontiersman não foge nem um pouco da descrição da mídia bolsonarista ou da alt-right norte-americana. Veículos direitistas que pregam uma “verdade alternativa” que esteve escondida todo esse tempo devido aos interesses dos “líderes mundiais” e do establishment. Tudo a favor do “cidadão de bem” e de suas liberdades individuais. Nesse sentido, é óbvio que o jornal ficcional defende os mascarados. Rorschach, um dos protagonistas, é inclusive fã do jornal e aparece sempre comprando as novas edições, o que evidencia um lado meio fascista do personagem e dos heróis de Watchmen em geral.
(Seymour David e Hector Godfrey na redação do ficcional New Frontiersman / Imagem: DC Comics)
O vigilantismo de Watchmen não é romantizado como em outras HQs de super-heróis, e sim tratado como uma brutalidade derivada de um Estado ineficiente e incapaz. Uma das principais frases que se repetem durante a obra é “Who watches the Watchmen?”, algo como “Quem vigia os vigilantes?”. Os “heróis”, entretanto, não são tratados como vilões e nem como mocinhos mas como humanos frágeis com suas inseguranças. E são justamente elas que os levaram a usar uma máscara.
O Comediante é deprimido e cético por crer ter visto a face sombria do mundo, sobrevivido e aceitado a realidade cruel em que vive, mas no fundo, sofre profundamente ao se deparar com o atual estado da humanidade. O Coruja tem problemas sexuais e só consegue se sentir confortável com uma mulher ao vestir seu traje de herói, claramente o autor brincando com um fetichismo dos mascarados. O Dr. Manhattan tem uma crise existencial por se perceber como um deus que pode fazer praticamente tudo o que quiser, mas não consegue nem manter um relacionamento e acaba abandonando a humanidade.
Porém, o Ozymandias, o homem supostamente mais inteligente do mundo, com seu ego e narcisismo, acha que consegue mudar o mundo através de um plano maquiavélico e genocida. O personagem fabrica um falso ataque alienígena à cidade de Nova Iorque que mata cerca de 3 milhões de pessoas e “acaba” com a Guerra Fria. O personagem é um retrato crítico do bilionário carismático, quase um Elon Musk, que quer “mudar o mundo”.
Em um dos quadros mais reveladores da graphic novel, Ozymandias reside em sua fortaleza na Antártica e liga diversos canais de televisão do mundo todo simultaneamente, com a intenção de se informar. Nesse simples painel, os autores constroem uma provocação interessante sobre a questão da hiperinformação por meio do avanço tecnológico muito antes da internet. Além disso, a composição ainda reafirma a questão da mídia como construção da base de uma sociedade: o personagem afirma “Só eu e o mundo”, como se a mídia representasse toda a humanidade (e de certa forma realmente representa).
(Ozymandias e a hiperinformação / Imagem : DC Comics)
(A comemoração de Ozymandias e a claustrofobia da informação / Imagem: DC Comics)
No final da obra, os grandes heróis são mais uma vez desconstruídos por não conseguirem deter o plano final de Ozymandias, os Estados Unidos e a União Soviética unem forças contra os supostos alienígenas e o mundo é “salvo”. Constrói-se uma claustrofobia pela cobertura midiática noticiando o acontecimento e um sufocamento dos personagens nos quadros pelos balões de conversa, evidenciando novamente o fenômeno da opressiva hiperinformação. A verdade é encoberta, a mentira é aceita por todos os protagonistas menos Rorschach, que é executado, mas até que ponto valeu a pena? Os fins justificam os meios? O utilitarismo na prática parece muito mais cruel do que na teoria. Fim amargo e difícil de digerir.
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