Giulia Mignone
Reportagem da CNN Brasil analisa as Olimpíadas mais atípicas da história, enfatizando o debate em torno da construção heróica do atleta
O coração acelera, os pelos da nuca se arrepiam, as mãos começam a tremer, a respiração fica desencontrada, o suor frio escorre pela testa… Na mente, um turbilhão de pensamentos, medos e anseios se misturam à expectativa da vitória. Esses efeitos, experimentados por qualquer pessoa que já tenha praticado um esporte competitivo, sempre foram representados como uma realidade distante dos atletas olímpicos. Estes, os de mais alto nível do planeta, eram vistos em torno da figura de heróis inabaláveis, cujas emoções não interfeririam na performance e qualquer demonstração de vulnerabilidade física ou, principalmente, psicológica, seria sinal de fraqueza. Afinal, o atleta é aquele que supera limites.
Contudo, as Olimpíadas de Tóquio foram diferentes. Foram diferentes não só por acontecerem em meio a uma pandemia, mas também por trazerem à tona o debate sobre a dimensão psicológica do esporte e dos atletas. Tendo isso em vista, Leandro Iamin e Paulo Junior, em colaboração com a CNN Brasil, produziram a matéria Na pandemia, espírito olímpico foi posto à prova na edição mais mental dos Jogos | CNN Brasil. Na reportagem, eles reforçam que no ano em que a preparação dos atletas não foi a ideal, por conta de calendários e finanças abaladas, houve uma edição mais disposta a debater a mente dos atletas, a demanda por representatividade nos Jogos e o caráter humano do evento.
À princípio, o texto analisa as singularidades das Olimpíadas de Tóquio 2020, ocorridas entre 23 de julho e 08 de agosto de 2021, um ano após a data prevista, devido à pandemia da Covid-19. Esses Jogos não contaram com astros como Usain Bolt e Michael Phelps, e sim com as eliminações precoces de Naomi Osaka e Teddy Riner, além da retirada de Simone Biles para tratamento de questões psicológicas. Foram realizados sem público, com espaçamento e máscaras. As restrições ao número de acompanhantes dos atletas tornou a Vila Olímpica mais pacata e os torcedores acompanharam as competições exclusivamente pela TV e pelas redes sociais, que não deixaram de escancarar o espírito olímpico com bastante humor, apesar do luto de meses vividos no cenário pandêmico.
O universo digital, em que essa edição do megaevento esteve completamente imersa, tornou impossível dissociar a figura do atleta ao seu desempenho e discurso. Na verdade, essa tendência mostra-se natural a partir do momento em que as redes sociais mudam a percepção que temos do mundo. Sendo assim, os repórteres nos fazem questionar: onde fica o espaço do atleta como pessoa? A pesquisadora Leda Maria da Costa, do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte da UERJ, procura analisar tal questão e defende que já é hora de ressignificar os papéis dos esportistas.
Em Tóquio 2020, essa necessidade reverbera. Os próprios atletas acabam por se expor, uma vez que estando no papel de pessoas públicas, procuram aliar a performance esportiva ao culto à personalidade. E para fazerem isso, tentam atender à demanda por um posicionamento social e político que passa a ser esperado deles. Assim, o espaço para se manifestarem, que o ambiente virtual lhes dá, também os expõem a um público receptivo a determinadas mensagens, mas rigoroso em relação a outras. Discursos em prol da inserção da diversidade sexual e de gênero encontraram apoio nas redes, com destaque para figuras como Marta, do futebol, Ana Cunha, da maratona aquática e Douglas, do vôlei. Em contrapartida, manifestações que desrespeitavam as normas restritivas da pandemia foram duramente criticadas.
Os autores procuram destacar, ainda, que nesse cenário em que os discursos ganham força, a performance esportiva é apenas uma pequena parte do que está em jogo. As narrativas sobre os atletas, que anteriormente eram construídas exclusivamente pelo jornalismo e pela publicidade, passam a ganhar novas formas de interação através das redes sociais. As atenções e olhares midiáticos ficam constantemente voltadas para os competidores que, de acordo com o que expõem, tornam-se ídolos, vilões ou meros mortais. Essa vigilância constante provoca um intenso desgaste emocional. Segundo Iamin e Júnior, o esgotamento do esportista representa o fim da fantasia e dos simbolismos.
Entretanto, a edição de 2020, entremeada pelo meio digital, traz inovação ao aproximar famosos de alto rendimento e anônimos que os acompanham. A cobertura midiática procurou investigar as histórias por trás das conquistas e, assim, pôde mostrar que muitos treinos realizados em casa, lives musicais, reuniões intermediadas por aplicativos e dificuldades impostas pela Covid fizeram parte da rotina de ambos, público e competidor, tornando-os próximos no caráter humano.
Foto: Gregory Bull/AP
Outro grande destaque da matéria se ocupa do caso Simone Biles e ressalta as repercussões que este terá no debate sobre a saúde psicológica dos competidores. A posição adotada por Biles, ao se retirar dos Jogos para tratar um burnout, marca o fenômeno social contemporâneo com ênfase. O nadador Bruno Fratus também sublimou a natureza mental dos Jogos Olímpicos de 2020, enfatizando que a alteração de vida provocada pela pandemia forçou todos a se adaptarem a uma logística nova. No caso dos atletas, muitos não descansam e se sujeitam a deterioração psicológica por saberem que a derrota, mesmo em anos atípicos, fecha muitas portas.
O texto se encerra dando visibilidade a mais um aspecto importante: as narrativas tradicionais construídas em torno da figura dos esportistas realçam a resiliência, a força de vontade e a capacidade de ultrapassar limites, mas excluem as diferenças de oportunidades e incentivo. No Brasil, esses fatores fazem com que só seja possível atingir a ponta da pirâmide esportiva com muito sacrifício e um pouco de sorte. Nesta edição do megaevento, tais problemáticas foram acentuadas por causa da pandemia e muitos competidores tomaram partido em denunciá-las.
Dessa forma, os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 colocaram em xeque questões que afetam diretamente a sociedade contemporânea. A mudança na construção simbólica do atleta depende de uma maior abertura ao debate, à aceitação e ao incentivo. A partir dessa edição, realizada em meio a uma pandemia que alterou paradigmas e colocou o universo virtual em destaque, a Pira Olímpica será sempre responsável por iluminar as dimensões psicológica, social e humana do esporte.
Parabéns pela matéria, Giulia! Conteúdo muito bom.