Clássico de Euclides da Cunha, o primeiro livro-reportagem escrito no Brasil continua surpreendendo leitores, mesmo passado mais de um século de seu lançamento
Alan Souza
“O sol poente desatava, longa, a sua sombra [da árvore] pelo chão, e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus, — um soldado descansava... havia três meses”. Este é um trecho de um dos maiores clássicos da literatura brasileira. No caso, o primeiro livro-reportagem do Brasil, que foi escrito por Euclides da Cunha em meio à sangrenta Guerra de Canudos, ocorrida entre os anos 1886 e 1887, no interior do nordeste brasileiro.
Ler Os sertões é como reviver a experiência tida por seu autor, quando andava pelos arredores da vila de Canudos e se deparava com um homem morto. O clima instaurado em todo o livro é de extremo terror, não somente por se tratar de uma história violenta.
Essa obra, publicada em 1902, é dividida em três partes: “A terra”, “O homem” e “A luta”. Muitos especialistas recomendam uma leitura a partir da terceira parte, porque as duas primeiras tendem a ser maçantes e pouco contribuem para a verdadeira história. No entanto, cada uma delas é essencial para para que se tenha uma proximidade com o que será relatado nas páginas que se apresentam em seguida. Por exemplo, na primeira parte, Cunha faz uma minuciosa descrição da região onde acontece o conflito, na Bahia, exaltando a beleza da caatinga, bioma em que hoje fauna e flora passam pelo processo de extinção. Os sertões o levou, inclusive, a ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Antes, ele era engenheiro e escrevia artigos para o jornal O Estado de São Paulo e foi enviado como correspondente de guerra para cobrir as campanhas militares contra o vilarejo.
(O vilarejo de Canudos/Imagem: Acervo Museu da República)
Canudos era um povoado composto por cerca de 25 mil homens e mulheres, sertanejos que nada tinham, além da vida e da própria fé. Antes de lá se reunirem, a confiança que eles tinham era de que dias melhores viriam, seja por meio das chuvas ou de um milagre qualquer. A segunda opção, no entanto, foi a mais viável quando Antônio Conselheiro se mostrou como o líder que eles precisavam. De cabelos e barba longos, vestindo uma túnica azul e com simples sandálias nos pés, o homem, para aquela gente pobre, era a personificação de algum santo — e isso era tudo o que elas precisavam para sair da situação de miséria. No livro, Euclides se refere a muitas dessas pessoas como “ínfimas e suspeitas, avessas ao trabalho”, mas isso será tratado melhor mais para frente.
Dessa forma, peregrinaram pelos sertões até juntarem-se numa fazenda abandonada, onde lá construíram suas pequenas e frágeis casas de taipa, que ao longo da história de Canudos, foram cerca de 5 mil. Os que acompanhavam Conselheiro eram de muitos cantos do interior nordestino. A imprensa da época e o próprio autor de Os sertões diziam que eles eram “fanáticos”, mas segundo o que o arqueólogo Paulo Zanettini disse à revista Superinteressante, eram seguidores do líder Antônio, porque “queriam uma cidade para rezar em paz”.
Outro ponto que levou à insurreição em Canudos foi a promessa de que lá não se pagaria imposto. A República estava proclamada há menos de 10 anos e para os sertanejos, era abusiva a cobrança de tributos, até porque, do Estado, eles nada recebiam. De certa forma, Conselheiro, que era monarquista, incitava um ódio pelo sistema que fora proclamado. Na época, circulou até mesmo informações falsas de que era a Inglaterra que patrocinava toda essa insatisfação. Mas no fim, as únicas coisas que os sertanejos verdadeiramente tinham eram a vida e a fé.
Essas peculiaridades do arraial já incomodavam as autoridades e diante de toda essa situação, com o objetivo de acabar com Canudos, o governo estadual da Bahia enviou para lá uma expedição policial. Fracassou. Outra foi enviada e da mesma forma que a primeira, retirou-se sem vitória. A favor dos sertanejos lutavam jagunços, que mesmo sem experiência e armas potentes e modernas iam para a guerra porque precisavam proteger sua comunidade. Aliás, Euclides da Cunha coloca em destaque que o conflito só existiu porque essas pessoas “defendia[m] o lar invadido, nada mais”. Um dos objetivos do jornalismo profissional é a defesa dos Direitos Humanos e nesse aspecto, o autor, mesmo com todas as controvérsias a serem vistas em Os sertões, tem muito a contribuir para a formação de novos profissionais, para que compactuem com uma sociedade com verdadeira justiça ou atenção com os mais humildes.
A terceira expedição foi comandada pelo coronel Moreira César, que por seu desempenho em combates era, inclusive, chamado de “Corta-cabeças”. Ele era um homem de “gesto lento e frio”, um verdadeiro calculista, e talvez por essas mesmas características foram depositadas nele toda a confiança. Moreira César, durante a campanha, revela-se uma perfeita representação daquela República que nascia desgastada. Ele sequer percebia que as pessoas com quem lutava eram, de fato, seres humanos. O Estado, por sua vez, de tanto se fazer cego perante o povo sertanejo, não se deu conta que aquela população também fazia parte do Brasil.
Sertanejos contra militares, e vice e versa (Imagem: Acervo Museu da República)
A terceira parte, “A luta”, é repleta de capítulos que não dão ao menos a possibilidade do leitor sentir a melancolia aterrorizante que cada morte tem. Aliás, ler as cenas da guerra é quase como sentir os respingos de sangue no rosto, de tantas passagens que relatam as batalhas. Mas depois de passados esses trechos descrevendo os combates, o livro costuma dar ênfase nas baixas no Exército. Essas partes, além de não transmitirem nenhuma emoção, tratam a própria morte como rotineira. Na verdade, a vida era inútil naquela guerra sem lei e sem piedade com ninguém.
“Vamos almoçar em Canudos!” foi o que disse o coronel Moreira César ao dar a ordem de ataque. Além da prepotência, essa frase mostra muito mais do que uma simples raiva contra o povoado de Conselheiro. Havia um descaso também com a vida dos combatentes. Os soldados eram mantidos em condições deploráveis de fome e não pensaram duas vezes em literalmente se aproveitar do que tinha de comida em Canudos. O texto de Euclides da Cunha é uma joia quando faz uso desses artifícios reais para criticar todo aquele contexto de guerra, ainda mais quando o que acontecia era um afronta contra os Direitos Humanos. Dessa forma, “a força do governo era agora realmente a fraqueza do governo”.
Se por um lado a insurreição em Canudos era fruto do fanatismo de seu povo por Antônio Conselheiro, por outro as expedições do Exército aconteciam pelo fanatismo ao republicanismo. O autor, que também tinha alguma experiência militar, com o título de tenente, faz críticas aos soldados, quando ressalta que morriam saudando a República. As percepções de Euclides vão além do que era apenas visto por seus olhos, até porque não fazia sentido exaltar aquilo que era falho em tantos pontos.
O coronel Moreira César junto às suas tropas foram derrotados, tendo ele próprio sido decapitado, numa menção ao seu incomparável apelido. Naquela altura, o país inteiro estava escandalizado com a coragem dos sertanejos. Uma quarta expedição foi enviada e, pelos aparatos que tinha — dentre eles os mais modernos e inovadores da época, como a dinamite, os potentes canhões Krupp e metralhadoras — só sairia com a vitória e com o arraial totalmente arrasado.
E foi, praticamente, com essa imagem de “ruínas” que Os sertões encerrou sua trajetória de mais de 600 páginas, na edição original. Após a captura ou morte dos sertanejos, o livro torna-se apático. Em suas últimas páginas é descrita apenas a volta dos soldados sobreviventes que traziam além da glória conquistada nas terras baianas, a cabeça de Antônio Conselheiro.
A Guerra de Canudos, que foi levada para o cinema em 1996 pelas mãos do diretor Sérgio Rezende, não era vista como um enfrentamento de brasileiros com outros brasileiros. Em síntese, não. Os jagunços e seus parentes e amigos eram como estrangeiros para o poder nacional e foram tratados como tal. Essa brutalidade com que os militares agiam é muito bem retratada no filme que foi lançado um século depois. O início da República brasileira, cabe ressaltar, foi uma época em que os mais marginalizados “não eram gente”, sequer mereciam respeito. Por exemplo, a própria varredura no centro do Rio de Janeiro, onde cortiços foram demolidos e as pessoas, expulsas de sua casa, explicita isso. O contexto em que o conflito de Canudos acontece era resultado de uma política específica. Os sertões é como uma crítica a todo esse esquema de destruição. Por isso, o livro serviu como uma forma de apontar as desigualdades. “E foi, na significação integral da palavra, um crime [a campanha de Canudos]. Denunciemo-lo”, ressalta Cunha.
Mas engana-se quem acha que o livro é uma perfeita lógica de enfrentamento às injustiças. Por meio de uma vasta riqueza de palavras incompreensíveis atualmente, o autor mesmo produz preconceito durante muitas partes do livro. Em 2019, quando Euclides foi homenageado na Flip, em Paraty, a curadora do evento, Fernanda Diamant, disse que sua “leitura precisa ser crítica. Escolher um autor homenageado não significa endeusá-lo”. A mesma postura tende a ser adotada quanto ao livro.
Os sertanejos (Imagem: Acervo Museu da República)
No aspecto de tratar o sertanejo como “estrangeiro”, o autor também dá a sua contribuição. Quando falava de um dos líderes da comunidade de Canudos, por exemplo, escreve: “legítimo cafuz, no seu temperamento impulsivo acolchetavam-se todas as tendências das raças inferiores que o formavam”. A eugenia que o escritor exala por meio de seu texto é um dos grandes fatores que levam a crer que o livro é rodeado de extremo terror. Os sertões contextualiza os horrores da guerra com todo o preconceito possível, chegando a promover em suas páginas a política do branqueamento. Um dos mais reconhecidos autores do Brasil tinha essa mentalidade mesmo passada quase uma década da abolição da escravatura. Entender o livro, portanto, não quer dizer que ele deve ficar acima do bem ou do mal, isento de críticas aos ferozes erros. Até porque a discussão precisa ser levada a frente, já que a sociedade brasileira ainda costuma emoldurar pensamentos racistas e colocá-los no ponto mais alto da parede, longe da correta fúria de quem quer liberdade real: os marginalizados.
Sem apaixonar e privado de possíveis fanatismos amorosos, Os sertões levanta muitas questões importantes e é um clássico da literatura justamente por tê-las destacado, tendo ganhado mais de 50 edições, inclusive uma adaptação em quadrinhos. Sua essência está nas denúncias que são feitas e muito por essa particularidade não pode faltar na estante de qualquer estudante, jovem ou profissional jornalista. Não daria, ou melhor, não dá para aceitar que o horror ocorrido em Canudos continue acontecendo. Até porque os assassinatos promovidos contra tantas pessoas, em suma vulneráveis, persiste em ter sucesso — e às vezes, até são aplaudidos. Os sertanejos, agora, são representados pelas vítimas do racismo, xenofobia, intolerância religiosa, machismo, homofobia, transfobia e de tantas outras formas de violência. Sofrem, sem deixar de lutar e combatem porque são fortes.
Olhando essas particularidades do texto de Euclides da Cunha, percebemos que o discurso pouco mudou. Mas um dia há de acabar, visto que o jornalismo continuará na sua poderosa função de denunciar.
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