Como os relatos de Vozes de Tchernóbil podem transformar a ideia de nação
Por Danilo Marques
Em Vozes de Tchernóbil, Svetlana Aleksiévitch escuta. A autora nasceu na Ucrânia em 1948 e foi testemunha do que aconteceria quase vinte anos depois. No livro publicado em 97, a jornalista reúne entrevistas com os outros que, além dela, testemunharam a tragédia e a sobrevida. Constitui um monumento ao nosso tempo e esvazia de sentido tudo o que tentou documentar uma realidade nefasta que abalou tragicamente o orgulho marxista-soviético. Svetlana visita a zona devastada e cede espaço a uma série de conclusões que consideram uma geração que viu Stalingrado, Auschwitz, uma Grande Guerra e, por fim, a catástrofe nuclear. Dentre os rumos que a cidade Pripyat, onde ficava a usina, poderia ter, nenhum deles seria tão trágico como o que se deu. A jornalista, que cultiva em sua escrita uma radicalidade ímpar na tentativa de traduzir o inexprimível, deflagra o deprimente retrato de uma cidade que teve sua história aterrada. Nesse caso, então, Aleksiévitch encontra alternativa no que os deixados para trás tem a dizer sobre o acidente nuclear.
A nação é irrevogavelmente imaginada. É como se fosse um mito. Foi por essa ideia que tantos mataram e morreram, como analisa Benedict Anderson, historiador e cientista político islandês. Submeter-se a um literal sacrifício. De certa forma, Tchernóbil resgata um senso de humanidade que fora deixado para trás pela atualidade. Toda a União Soviética acaba metamorfoseando-se em um tempo de completa ruína em que as razões do mundo se transformaram. Se hoje as identidades são movediças, o século XX inteiro pôs-se a ser o que foi. Reflexo disso foi o imenso “continente socialista”, como chama Svetlana Aleksiévitch, autora de Vozes de Tchernóbil: o Império, que refundou e reestruturou um país de imensas escalas e exortou seu destino frente ao quadro feudal tzarista, não falhou ao imaginar o que era o ‘homem soviético’. Assim como os esforços ocidentais puseram-se a pensar um hemisfério inteiro, os soviéticos construíram seus heróis. É sob a sombra do heroísmo que se assentou a consciência soviética ante ao mundo que, mais tarde, entregaria-se ao choque.
Pessoas na Praça Vermelha, em Moscou, capital da União Soviética (Foto: Vladimir Lagrange)
Há um grande número de pessoas em frente à Praça Vermelha, na capital Moscou. Na fotografia de 1962, de Vladimir Lagrange, fotógrafo soviético, o espírito do tempo é capturado, como se fosse perpétuo o sentimento que perdura, hoje, como nostalgia. Não à toa, os hospitais psiquiátricos de toda a URSS, pós-dissolução, ficaram lotados na década de 90, do último século. Um mundo foi imaginado durante os anos soviéticos, para além de uma nação. Os suicídios passaram a ser solução quando desmonta sobre toda a gente as lógicas que, até então, faziam sentido. “Ou guerreávamos ou nos preparavamos para a guerra”, diz Svetlana. Assim como os homens que deixavam famílias e morriam pelo nacionalismo que fora construído nas vias de desenvolvimento da potência e da poética marxistas, as pessoas, “no final das contas”, continua, “se matam por amor [...]. Elas não conseguiram abandonar a Grande História”, conclui a autora. E, agora, levantar-se para que bandeira? É como se o passado se tornasse passado instantaneamente, visto que a brusca ruptura que esvaziou de sentido toda a galeria de heroísmos soviéticos, fez do presente um não-lugar. Um não-território, em que todos os monumentos de um bloco dissolvido na atualidade são vasta lembrança do século passado, da solidez e do brutalismo. Depois que Gagárin foi ao espaço, foram capazes de tudo, incluindo seu próprio fim.
O fracasso se deu antes de todas as rupturas e crises econômicas que se alastraram rapidamente por toda a União Soviética. Foi quando a Nação sabotou a confiança enrijecida na consciência leninista, de súbito. Na madrugada do dia vinte e seis de abril de 1986, toda a população de Tchernóbil viu o futuro ruir. Tentaram salvar, no entanto, o tempo do destino inóspito, sem sucesso. A tragédia resvala a consciência da guerra porque não há contra quem lutar. Solapa os homens que viam-se como heróis de um futuro de perpétua ameaça. O desastre nuclear que fez de uma cidade inteira a alegoria trágica do Império que, em 91, caiu em si, deixou memória viva para trás, exposta à radiação.
No território ucraniano, nada continua vivo da mesma forma que antes, a não ser todo o resto de vida que adaptou-se à intervenção brutal das usinas. Na madrugada, todos os bombeiros foram convocados à tentativa inútil de remição. 800 mil soldados foram enviados, munidos e, portanto, prontos para combate. No fim, o desastre acaba atravessando o corpo e a memória de um país que imaginou um futuro que, abruptamente, tornou-se parte do sarcófago construído em volta das estruturas capazes da destruição massiva de um povo. Para cada 100 mil habitantes, há 6 mil acometidos por doenças oncológicas. Aos poucos, um genocídio em curso passou a cruzar terriórios inteiros — como Belarús, que sofre de um notável descenso demográfico, tendo como principal fator a radiação, que contaminou 23% do território do país —. E, em segundo plano, um memoricídio assola a consciência nacional soviética, tão duramente forjada ante ao mundo que mostrava-se cada vez mais próximo de um país ideologicamente murado. Tchernóbil, enfim, revela uma nação em ruína em que a memória permanece ameaçada por um terror que sempre fora iminente. Iminente, porém, invisível: os homens que sacrificaram-se — não sabiam, no entanto, que sacrificavam-se ao postergar o inevitável — não sabiam, ao menos, a quantos roentgen, unidade usada para medir radiação, estavam expostos. Não tinham esse direito. E suas vidas deixadas ao relés. Vale questionar o quão dispostos estariam se soubessem contra quem estavam lutando; é óbvio, no entanto, que o homem soviético colocaria-se disposto se soubesse que o dia vinte e seis de abril representaria um futuro que transborda a consciência histórica de uma geração. A lembrança é perpétua, frente a nós e a radiação, que, à sua medida, são perecíveis. A destruição, que apela por um poder irresistível, é a “catástrofe da consciência”, porque “a realidade não cabe no homem”, como pensa a escritora.
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Pouco se tem a dizer precisamente sobre a tecnologia — e do que foi capaz —, como diz a autora, pouco se entende, também. Porque foi explodida uma enorme galeria de “representações e valores”. A estética da guerra em curso é rememorada e retomada ao longo dos imensos monólogos e diálogos: um país que esperava a guerra mostrou-se combatente. A esses cenários, a autora pergunta-se contra quem lutavam. O livro, para além de evocar a voz aterrada de um povo, busca respostas para o silêncio sepulcral das autoridades ante ao sacrifício coletivo – e assim pode ser chamado já que nenhum dos homens e mulheres trabalharam em condições minimamente seguras, dos que a autora, em seu monólogo, classifica como heróis. Tchernóbil narrado por Svetlana diz muito mais sobre o que era Pripyat e o que se tornou a cidade ucraniana que faz fronteira com a pequena Bielorrússia. E, para isso, ouve. Constrói um exercício baseado nas tradições históricas orais. Documenta um mundo esquecido narrado por vozes igualmente esquecidas. O Ocidente dedicou-se fortemente a falar da tragédia que enunciava o fim do tempo soviético: “sobre o evento, propriamente , já foram escritas milhares de páginas e filmados centenas de milhares de metros de película”. O livro retorna a um território morto para escrever sobre toda uma geração que encontra-se ameaçada pelas falhas da memória coletiva. O dia 26 de abril tornou-se metáfora para a política ocidental e oriental. Diz muito sobre as vezes em que a humanidade atenta contra o planeta hóspito. Para os que ficaram, Tchernóbil não é muito além do que é: suas vidas. A catástrofe, nesse caso, como diz a autora, significa o fim, a nível individual do que não se estende, de maneira nenhuma, ao espaço público.
“As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio, débeis em face do teu pavoroso poder”, escreveu Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro, em 1983. As vozes abandonadas que não esqueceram-se do terror dizem mais sobre o futuro do que sobre o passado, assim como toda a História dedicou-se a ser uma “caixa-preta viva”. O desastre nuclear há de ser superlativo ante a todas as outras atrocidades em que se viu a humanidade, já que, em Tchernóbil, os sensos de nação e heroísmo foram latentes. Com a queda da União Soviética, caiu, também, o passado sólido, de identidades delimitadas. Sobre isso, o filósofo e economista Karl Marx diz que “tudo o que é sólido, se desmancha no ar”. O monumento ao tempo de Aleksiévitch se faz relevante ao passo que revela a morte de um século e, para além disso, desafia a capacidade humana em consciência. A autora conclui que Pripyat se viu pequena quando o mundo se viu menor ainda.
Depois de poucos dias, o desastre soviético se tornou não-limítrofe: já havia nuvens radioativas em toda a parte, na África e na América. Assim como todos os que viviam em torno das usinas foram desterritorializados para que não morressem, a radiação acabou transbordando todo tipo de fronteira. Por fim, na “época das catástrofes”, em que a guerra cede lugar, povos inteiros assistem a um futuro de horizontes históricos distópicos. Tchernóbil, portanto, é uma ruína do que já fomos. Uma ruína da nação.
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