No último dia 10, a série em áudio recebeu o prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e dos Direitos Humanos
Por Ana Cecília Antunes
O podcast Projeto Querino promete contar a história do Brasil a partir de um olhar afrocentrado. Foi por conta dessa visão voltada à origem e construção escravocrata do país que o trabalho venceu o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e dos Direitos Humanos em Produção Jornalística em Áudio, no dia 10 de outubro. O objetivo do projeto é, então, lembrar do que foi condenado ao esquecimento. “Botar o dedo na ferida das elites”, como explica o idealizador e coordenador do projeto, Tiago Rogero, em entrevista à revista Piauí. Em oito episódios, Rogero costura narrativas do passado a relatos da atualidade, mostrando como o racismo sempre foi e ainda é muito presente na estrutura do nosso país.
Apesar de já ser uma grande produção por si só, o projeto Querino é uma iniciativa que vai além do programa de áudio. O site e a série de matérias publicadas na Piauí também compõem o trabalho. Essa ação teve como inspiração principal o “1619 Project”, veiculado pela The New York Times Magazine. A autora dessa proposta, Nikkole Hannah-Jones, participa do episódio extra do projeto Querino “Água e Fogo”. O diálogo entre ela e Tiago Rogero evidencia uma semelhança entre o Brasil e os Estados Unidos da América: a história da população africana e afrodescendente não é ensinada.
Mas foi justamente essa lacuna educacional que impulsionou o jornalista freelancer e roteirista Tiago Rogero a realizar o podcast. Ainda no episódio adicional, ele fala sobre uma mesa de Conceição Evaristo que assistiu em 2018. Uma provocação da escritora fez com que ele percebesse o tanto que havia aprendido sobre a Revolução Farroupilha — na escola e na televisão — e o pouco que sabia sobre a Revolta dos Malês. Foi nesse momento que ele decidiu, por meio de sua profissão, compartilhar as histórias que as instituições de ensino e a mídia não contam.
Histórias como a de Delfino, homem negro e livre que foi preso em 1826, sem ter sido acusado de nenhum crime. Depois de dois meses na prisão, ele fez uma petição de liberdade à Câmara, já que a constituição de 1824 previa que todo cidadão do império que fosse preso teria o direito de saber qual era a acusação contra ele. O que aconteceu foi o seguinte: o homem que escravizava Delfino faleceu. Um de seus herdeiros vendeu Delfino, mas por conta da briga familiar em torno do patrimônio, esse comprador decidiu libertar o escravizado. No entanto, a justiça decidiu que ele deveria ficar preso até que fosse dada uma palavra final sobre a situação.
“Sabe a presunção de inocência? ‘Todo mundo é inocente até que se prove o contrário’? Na teoria deveria ser assim. A presunção nesse caso do Delfino num era a de liberdade. Era de escravidão”, critica Rogero, no primeiro episódio do projeto Querino.
O desconhecimento sobre fatos como esse leva ao apagamento da origem da violência cometida contra Anderson Gonçalves, por exemplo. Ele passou 15 meses preso injustamente. Em 2019, ele foi abordado pela polícia no caminho para o trabalho. Ele foi acusado de um assalto que não cometeu. A vítima desse assalto disse que o assaltante era um homem negro com uma cicatriz no rosto. Na delegacia, os policiais colocaram três pessoas para a vítima reconhecer: dois homens brancos e Anderson, que tem a pele preta. Anderson não tinha nenhuma cicatriz. Mesmo assim, a vítima foi induzida a reconhecê-lo como o culpado.
Essa é apenas uma das nuances apresentadas no podcast dessa forma de opressão tão duradoura e eficaz que é o racismo. O Querino também aborda temas como: a Independência do Brasil como pacto de manutenção da escravidão, a exploração do trabalho, o preconceito contra as culturas afrodiaspóricas e a precarização do acesso à educação, à saúde e à liberdade religiosa. E faz isso dando sempre destaque à luta do povo preto contra essa conjuntura. O próprio nome “Querino” vem dessa valorização. O intelectual negro Manuel Raimundo Querino foi o primeiro a defender que os africanos e seus descendentes contribuíram positivamente à nação brasileira, num momento em que as correntes teóricas predominantes eram as do racismo científico.
O nome desse pesquisador ainda vai continuar sendo lembrado por meio do projeto de Tiago Rogero. Isso porque a ação ainda está ativa, com a produção de um livro, uma graphic novel ficcional e um projeto de educação baseados no podcast. O projeto Querino é mais um exemplo de como a população negra sempre lutou, luta e continuará lutando por seu espaço, por seus direitos e pela democracia. Afinal, é como diz a célebre frase de Conceição Evaristo:
“Eles combinaram de nos matar, a gente combinamos de não morrer.”
(Conceição Evaristo, Olhos d'água)