Maria Eduarda Guimarães
O período entre os anos 1990 e 1994, na África do Sul, foi marcado pelo enfraquecimento e consequente fim do regime do Apartheid, além da organização da primeira eleição multirracial do país. Nesse contexto, dois partidos se destacaram na disputa presidencial: IFP (Partido da Liberdade Inkatha), presidido por Mangosuthu Buthelezi, e o CNA (Congresso Nacional Africano), comandado por Nelson Mandela. A rivalidade entre os partidos era incentivada pelo governo vigente (que apoiava o IFP) para enfraquecer o CNA, conhecido por ser mais ativo contra o regime.
Nesse cenário conflituoso se passa o filme Repórteres de Guerra, que expõe a história verídica vivida pelos integrantes do “Bang Bang Club”, apelido dado ao grupo de quatro fotojornalistas de guerra. Kevin Carter (Taylor Kitsch) é um fotógrafo freelancer que se junta a Greg Marinovich (Ryan Phillippe), Ken Oosterbroek (Frank Rautenbach) e João Silva (Neels Van Jaarsveld) para realizar a cobertura fotográfica do jornal sul-africano The Star.
Da esquerda para a direita: Frank Rautenbach, Patrick Lyster, Taylor Kitsch e Ryan Phillipe (Imagem: Reprodução)
Como na época as tecnologias de comunicação global não eram tão avançadas como são hoje, o fotojornalismo exercia um papel muito importante de divulgar para o mundo o que acontecia no país, destacando ainda mais o trabalho do grupo. Ainda assim, é importante realçar que os repórteres viviam de forma quase alheia aos acontecimentos, transitavam pelo caos como se as lentes da câmera criassem uma barreira entre eles e o resto do povo, agiam como se fossem blindados, e de certa forma, eram. O fato de serem brancos lhes abria um caminho que fotógrafos negros não poderiam acessar, uma vez que serem confundidos ou com Inkathas ou com membros do CNA representava um risco vital. Como exemplo disso, um jornalista negro faz esse contraponto ao criticar Greg com a fala: “Outro fotógrafo branco pra fazer dinheiro em cima de sangue africano”. Esse mesmo repórter sul-africano afirma que a imagem que rendeu um prêmio Pulitzer para Greg somente beneficiaria ao governo vigente. Segundo ele, uma imagem de apoiadores do Congresso Nacional Africano assassinando brutalmente um homem que acreditavam ser um espião zulu somente reforçaria o discurso de que os brancos deveriam continuar governando e os negros sendo governados. Isso cria um certo choque em Greg, que demonstrava acreditar que seu trabalho sempre viria como uma ajuda.
(Apoiadores do C.N.A. assassinando brutalmente um homem que acreditavam ser um espião Inkatha. Greg Marinovich, 1991)
O eixo dramático principal explora os limites do profissionalismo e da ética. O filme é construído para gerar um certo incômodo sobre como os repórteres lidam com a violência do conflito e o sofrimento vivido por aquele povo. Sob uma trilha sonora alto astral ("Bang Bang", de Joe Cuba), eles brincam em meio a cenários de guerra e desviam de tiroteios como se estivessem disputando uma partida de paintball. Os personagens são retratados como aventureiros, admirados por toda a comunidade jornalística pelo estilo de vida perigoso e dinâmico. Contudo, intercalando com a violenta realidade dos fotografados, o longa consegue demonstrar a problemática de seu comportamento. De certa forma, a atitude deles é compreensível; envolver-se demais com a situação tornaria o trabalho ainda mais difícil. Entretanto, a autopreservação e o peso moral de expor um problema social não justificam a falta de empatia que eles demonstram em diversos momentos.
(O abutre e a menina. Kevin Carter, 1993)
Um dos pontos chave para o desenvolvimento dessa questão ocorre quando Kevin Carter registra a famosa fotografia em que um abutre parece esperar a morte de uma menina em situação de fome no Sudão, mas não retira a criança daquela situação. O fotógrafo vence o Prêmio Pulitzer e, quando questionado sobre o momento da foto, esquiva-se, alegando que estava realizando seu papel de jornalista e seu trabalho a ajudaria de diversas outras formas. Gera-se então o questionamento: onde fica o limite entre o profissional jornalista e o ser humano jornalista? Ainda que seja necessária uma certa frieza para que se consiga trabalhar de forma profissional em ambientes caóticos, existem momentos em que a solidariedade torna-se mais pertinente. A sensibilidade é essencial nessa profissão, ninguém é só uma imagem. Toda a polêmica causada pela foto colabora no agravamento da depressão que levou o fotógrafo a se suicidar pouco tempo depois. A doença e seu fim trágico demonstram que ele não conseguiu lidar com tudo que viu e com o que não agiu contra, chegando a afirmar que “sentar e esperar as pessoas morrerem” era o que resumia o trabalho deles.
Além disso, esse momento nos faz refletir sobre a desumanização de pessoas negras africanas. Quanto da atenção dos fotógrafos vale a vida daquele povo? Uma fotografia pode ajudar pessoas de diversas formas possíveis, mas, muitas vezes, não é o suficiente. Salvar alguém da morte, por exemplo, é muito mais relevante do que somente fotografar essa mesma pessoa sofrendo. Kevin não é o único a agir dessa forma, em determinado momento do filme, Greg age de forma insensível diante da morte de um adolescente durante um atentado.
Outro ponto importante levantado pelo filme é a imparcialidade jornalística. Quando Greg fotografa um homem em chamas e a foto se espalha pelo mundo, o governo pressiona o jornalista a entregar quem eram os assassinos em questão sob pretexto político de desmoralização de outros partidos. Ao se deparar com a situação, Greg opta por sair da cidade, afirmando que depor sobre o ocorrido seria escolher um posicionamento, violando o princípio da imparcialidade, tão importante para a profissão.
O diretor Steven Silver é sul-africano e já dirigiu mais de sete documentários. A experiência em lidar com a realidade colaborou para o sucesso do seu primeiro longa-metragem Repórteres de Guerra. O filme consegue expor os dramas e conflitos do jornalismo de forma muito fiel, levantando questionamentos sobre ética, sensibilidade e profissionalismo, tornando-se um filme essencial para quem deseja seguir a carreira.
Brilhante jovem
Muito bom!!!
Texto incrível!