Explorando as nuances da ética jornalística, longa retrata o dever fundamental da imprensa em um brilhante paralelo com a atualidade.
Beatriz Bezerra
Há quase 40 anos, o The New York Times estampava na sua primeira página um dos maiores escândalos políticos vivenciados na história dos Estados Unidos. Irrompendo na derrocada inicial de Nixon, os Documentos do Pentágono expuseram ao país norte-americano aquilo que os demais já sabiam: as verdadeiras intenções ianques na Guerra do Vietnã. A projeção imagética de um heroísmo falho, alimentada pelo governo, logo sucumbiu às suas próprias mentiras. Se não é possível confiar em nossos líderes, a quem a população deve recorrer? É nesse ponto que o filme de Steven Spielberg, The Post, relata o verdadeiro papel da imprensa, sua influência enquanto agente social e, inevitavelmente, a necessidade da contínua luta contra a censura.
Baseado em fatos reais, o longa-metragem que se passa na década de 70 narra a história da publicação dos Documentos do Pentágono. Quando a série de estudos confidenciais sobre a Guerra do Vietnã é exposta ao público pelo The New York Times, o jornal sofre uma restrição judicial que o impede de continuar reportando estes arquivos. É nesse momento que o Editor-Geral do The Washington Post, Ben Bradlee (Tom Hanks), convence sua Redação a iniciar a corrida em busca do furo jornalístico e, assim, continuar o que o Times não pode finalizar. Em um dilema ético e moral, Katherine Graham (Meryl Streep), proprietária do Post, precisa decidir se a publicação compensa seus riscos.
(Tom Hanks à esquerda e Meryl Streep à direita / Imagem: Reprodução)
De forma sútil, a direção de Spielberg consegue captar a contemporaneidade da reivindicação pela liberdade de imprensa. “Nixon usará todo o poder da presidência e se houver uma forma de destruí-los, ele o fará.” A frase dita pela personagem de McNamara (Bruce Greenwood) — então Secretário de Segurança do Estado — a Katherine Graham soa familiar aos discursos proferidos por Donald Trump à imprensa. O atual presidente dos Estados Unidos não mede palavras ao acusar a mídia como tendenciosa e falaciosa. Entre as ameaças constantes recebidas pelo meio jornalístico, Spielberg relata, através de sua história, a censura como algo além de uma determinação por lei, mas um conflito de interesses e abuso de poder que acontece frequentemente.
(Donald Trump e Richard Nixon se cumprimentando em evento de gala. / Imagem: Reprodução)
A linha tênue que impossibilita que o filme se passe na realidade presente é meramente histórica: a Guerra do Vietnã. Não fosse o contexto do enredo voltado a esse evento, seria plausível entendê-lo como uma obra atual. "Senti que existia uma urgência de refletir 1971 e 2017 porque eles foram terrivelmente semelhantes", alegou o diretor acerca de seu trabalho. Se quatro décadas parece um longo tempo, The Post nos mostra o quanto ainda estamos perto do passado.
Em um momento em que os discursos de líderes mundiais vêm degradando o papel da imprensa em nossa sociedade, o roteiro carregado de idealismo não apenas mostra uma face do jornalismo que há algum tempo vem sendo apagada pela narrativa das “fake news”, como também contrapõe os ataques que a mídia de hoje enfrenta.
O longa aponta em seus minuciosos detalhes o jornalismo em sua essência. Seus fundamentos se fazem presentes na corrida acirrada por informações e checagem de fatos, quando Bagdikin (Bob Odenkirk) traça sua rede de contatos até localizar uma fonte confiável; são sutilmente representados pelas ondas de protestos a favor da liberdade de imprensa, incitadas pelas publicações do Times e do Post; são percebidos quando diante da chance de serem condenados à cadeia, Ben e Katherine ainda optam por publicar os documentos. Em cada uma de suas cenas, The Post relembra seus telespectadores que, em seus ideais elementares, o jornalismo foi construído a fim de comunicar informações essenciais ao conhecimento público e não os enganar. Por mais que seja possível encontrar canais de comunicação que não vão de encontro às ideias expressas pelo filme, aquilo que se difere dessas convicções é um Jornalismo que há muito já se perdeu de seu propósito e quiçá não mereça este título.
Spielberg explora as nuances da ética jornalística em suas regras próprias. “Como você acha que ganhamos a vida por aqui?”, é a resposta de Bradlee quando questionado sobre a legalidade de seu trabalho. A obra expõe o dever para com a reportagem dos fatos e a retratação da verdade como um princípio que está acima da influência de autoridades governamentais. Tais aspectos constroem uma impecável ascensão à afirmação de Hugo Black, juiz do caso: “A imprensa foi feita para servir aos governados, não aos governantes.”
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