Com a participação de diversos ex-funcionários de alto escalão, o documentário aborda as complexidades do tema sem perder a atenção do público
Juliana Sorrenti
Pôster do documentário (Imagem: Reprodução)
Há cerca de dez anos, o mundo começou a mudar e ninguém percebeu. Nesse tempo, o planeta continuou a girar, mas líderes políticos ascenderam de subcelebridades a presidentes com discursos pró-retrocesso; terraplanistas e o movimento antivacina ganharam milhões de seguidores e deslegitimam os avanços conquistados pela ciência; radicais conquistaram as ruas com símbolos e bandeiras nazifascistas. Muitos questionam o ponto de partida dessa caminhada a passos largos rumo à destruição da democracia. Entre dedos apontados para diferentes direções, alguns dos maiores especialistas de tecnologia afirmam que as redes sociais, que eles mesmos ajudaram a desenvolver, podem ser responsáveis pelos maiores desafios que a humanidade já enfrentou.
Dirigido por Jeff Orlowski – vencedor de dois prêmios Emmy de Notícias e Documentários – The Social Dilemma (Netflix) explica como essas ferramentas, aparentemente ingênuas, viciam usuários e ajudam a propagar fake news. Ao lado de acadêmicos e de outros ex-funcionários de alto escalão do Facebook, Instagram, Twitter e Pinterest, Tristan Harris – ex-designer ético do Google e cofundador da ONG Center for Humane Technology – é a figura central do roteiro.
“Qual o problema?”, questiona uma voz masculina a esses homens e mulheres logo nos primeiros minutos. Entre expressões sérias, silêncios pensativos e risos engasgados, não há respostas imediatas. Provocativa, a pergunta exige um alto grau de complexidade, que meia dúzia de palavras não poderiam exprimir. Com flashs de reportagens e a introdução de uma história ilustrativa, os 194 minutos são uma tentativa de solução. Inegavelmente, bem-sucedida.
Indo de mecanismos complicados, como o modelo de negócios adotado pelas empresas, ao impacto das redes na vida de bilhões de pessoas, o filme aposta em uma abordagem didática para democratizar a informação. “Porque isso não deveria ser algo que apenas a indústria da tecnologia sabe”, explica Harris. Em oposição aos trechos com ar de entrevista, o filme ganha dinamicidade com escolhas criativas – como ilustrações e infográficos que atraem o olhar do espectador. O destaque vai para a metáfora visual dos algoritmos: interpretados pelo mesmo ator, mas diferenciados pelo cabelo e a cor da blusa, eles controlam as taxas de engajamento, alterando o fluxo e os tipos de anúncios, as recomendações de vídeos e as notificações da tela. Em busca da nossa atenção, não há limites que não possam ser ultrapassados. “Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de ‘usuários’: drogas ilícitas e software”, lembra Edward Tufte, estatístico e professor emérito de Yale.
Outro ponto interessante é a decisão de incorporar uma narrativa fictícia ao documentário. Ao mesmo tempo que assume a função de licença poética para os momentos desgastantes, o dia a dia de uma família estadunidense é utilizado como um espelho, que reflete algumas das consequências das redes sociais: afastamento entre pais e filhos, problemas de autoestima em meninas adolescentes e radicalização política. No entanto, é preciso lembrar que essa última característica é tratada de maneira problemática. Ao colocar esquerda e direita na mesma balança, o documentário cria a impressão de que os dois lados utilizam as mesmas táticas, como as fake news, o que não é verdade.
Ao destrinchar pontos-chave, como os conceitos de usuário e produto, o documentário aumenta o clima de tensão. A mensagem é clara: somos parte de uma vitrine de dados, aberta 24 horas para qualquer um que esteja a disposto a pagar. Por outro lado, não apenas informações são vendidas, mas também mudanças sutis nas nossas mentes. Como explica Jaron Lanier, cientista da computação e precursor da realidade virtual, somos etiquetados com cifras quando a recepção de uma marca no mercado está em jogo.
Essa sensação de ser apenas uma marionete permeia todo o filme, mas ganha contornos mais assustadores na cena em que o Ben (Skyler Gisondo), um dos filhos, não resiste à tentação de checar as notificações do celular após quase quatro dias sem usá-lo. Ao som de I Put a Spell On You, de Nina Simone, a tela ganha tons de vermelho e os cortes alternam entre o quarto do adolescente e o quartel-general da inteligência artificial, que o mantêm preso ali. A analogia do feitiço, inclusive, já havia sido feita por Harris, o que torna o momento ainda mais impactante.
Momento em que Ben (Skyler Gisondo) desiste e volta ao vício das redes sociais (Imagem: Reprodução)
Falar de manipulação de dados após tantos escândalos não é uma novidade para o público bem informado e mais engajado com os dilemas da tecnologia. Apesar da temática ser interessante, o triunfo do documentário não está no assunto, mas em quem o traz à superfície. O protagonismo é entregue nas mãos dos antigos presidentes, diretores, gerentes, criadores e designers das gigantes bilionárias do Vale do Silício. Embora eles não tornem as mentes por trás das redes sociais os vilões da história – até mesmo porque participaram desse processo – entendem que aquilo que foi criado por eles no passado tomou rumos inesperados.
Esse elenco, além de permitir uma visão privilegiada, de dentro para fora – que abre espaço para críticas mais incisivas – também possibilita maior credibilidade não apenas ao filme, mas ao tema. Diferente de hackers, que podem sofrer com o descrédito da mídia, as suas vozes não podem ser ignoradas: quem melhor para falar de algo senão alguém que construiu aquele mecanismo?
Cumprindo, enfim, o desejo de Harris, The Social Dilemma amplia o conhecimento do lado obscuro das redes sociais para além da indústria da tecnologia. Enquanto jornalistas, o acesso a informações dessa magnitude nos faz pensar em nossa postura profissional: temos contribuído para o acobertamento dessa situação? A história da humanidade já provou diversas vezes que o silêncio de hoje pode contribuir para o fim do amanhã. O documentário desperta o público: é hora de mudar, antes que seja tarde demais.
Parabéns, Ju! O texto está incrível.