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Uma estranha no ninho

Atualizado: 11 de set. de 2021

Cristiane Costa

Como uma pioneira repórter do século 19 se infiltrou em um hospício feminino em Nova York para narrar os abusos sofridos pelas internas.


Vista do manicômio na Ilha Blackwell, em Nova York


Se Nellie Bly fosse um personagem, seria totalmente inverossímil. No entanto, as histórias que escreveu, sempre em primeira pessoa, são reais. Elizabeth Cochran Seaman, seu verdadeiro nome, efetivamente se internou em um hospício feminino para narrar o dia a dia das mulheres rotuladas como histéricas e mostrou a Júlio Verne que era possível dar a volta ao mundo em menos de oitenta dias. Tudo isso no século 19, quando garotas com rosto de porcelana como ela usavam espartilhos e anquinhas para conquistar bons maridos. Até bem pouco tempo atrás desconhecida no Brasil, Bly tem sido cultuada nos Estados Unidos, com teses, biografia, obra completa, série, filmes, livros infantis, desenhos animados e até selo comemorativo. Em um mundo ávido por aventuras, de preferência protagonizadas por garotas bonitas dispostas a tudo para deixar a sua marca, é o que se pode chamar de personagem perfeito.


Desde o ano passado, a febre Nellie Bly tem se espalhado pelo Brasil, com três edições diferentes de seu livro mais famoso, sobre sua infiltração em um hospício. Sua importância pode ser medida pelos prefácios assinados por duas das mais importantes repórteres investigativas do país: Patrícia Campos Mello, premiada com o Maria Moors Cabot da Universidade de Columbia, abre a edição da Fósforo; e Daniela Arbex, autora de Holocausto brasileiro, sobre maus-tratos em um hospital psiquiátrico de Barbacena, assina o prefácio da Ímã Editorial (que editou ainda outro clássico de Bly, A volta ao mundo em 72 dias). A Wish produziu uma edição, com tradução de Karine Ribeiro, em regime de crowdfunding.


Celebridade já em sua época, Bly inaugurou o stunt reporting, ou jornalismo de disfarce, majoritariamente exercido por mulheres ambiciosas como ela, as stunt girls, que se infiltravam em lugares fechados para narrar em primeira pessoa tudo o que viam e ouviam. Frequentaram casas de ópio, mendigaram sob sol e chuva, acompanharam abortos ilegais, enrolaram tabaco em fábricas de cigarro e exploraram a alma encantadora das ruas, até então vetada às moças de família. Há registro de que o gênero tenha tido seguidoras até no Brasil. Mas apenas o nome de Nellie Bly sobreviveu, e como nota de rodapé em textos dedicados à penny press, o jornalismo caça-níquel inaugurado pelo mesmo Joseph Pulitzer que hoje dá nome ao prêmio de reportagem mais prestigiado do mundo.


Grande parte dos livros sobre jornalismo nem sequer menciona o gênero stunt, muito menos suas precursoras do sexo feminino, dando a falsa impressão de que as redações eram ocupadas apenas por homens com bigodes compridos e pincenê. Quando tocam no assunto, concentram-se na disputa entre dois deles: Joseph Pulitzer, que assumiu o New York World em 1883, e William Randolph Hearst, que desafiou sua supremacia ao comprar o rival Journal em 1895. A rivalidade entre os dois magnatas marcou a era do jornalismo marrom, que apelava para táticas comerciais e sensacionalismo para aumentar as vendas, o que acabaria influenciando toda a imprensa mundial. As stunt girls passaram a ser vistas com certo embaraço, representando um formato antiquado que se chocava com os novos paradigmas da objetividade jornalística.


Bly passou por uma delegacia, um juiz e quatro médicos antes de pisar no famigerado hospício.

O resgate de Nellie Bly como personagem e autora pode ser creditado, em boa parte, à entrada maciça das mulheres nas redações, nos cursos de jornalismo e em pós-graduações. Embora tenha morrido há quase um século, só ganhou uma biografia em 1994, Nellie Bly: Daredevil, Reporter, Feminist (Nellie Bly: destemida, repórter, feminista), de Brooke Kroeger. As bem cuidadas edições brasileiras são a chance de descobrimos as reportagens que fizeram a fama de Bly, seu estilo investigativo e as tiradas bem-humoradas, que garantiam um aumento significativo das tiragens do jornal que estampasse seu nome em uma reportagem. Nellie Bly não só apurava uma notícia; ela era a notícia.


Nellie Bly (Divulgação)


É como uma verdadeira estranha no ninho que Bly observa atentamente o que acontece com as mulheres consideradas loucas em seu primeiro grande sucesso, Dez dias no manicômio (ou num hospício, a depender da editora), originalmente publicado como uma série de reportagens em outubro de 1887. “O manicômio da Ilha Blackwell é uma ratoeira humana. É fácil de entrar, mas uma vez lá dentro é impossível sair”, conta, sobre o hospício feminino que funcionou em Nova York na mesma época em que Charcot e Freud estudavam a histeria feminina no Hospital da Salpêtrière, em Paris.


Feminismo

Do lado de fora, o feminismo dava seus primeiros gritos. Reconhecendo ser “impaciente demais para trabalhar nas tarefas habitualmente designadas para mulheres nos jornais”, como as colunas de moda e cuidados domésticos, Bly integrou a primeira onda do movimento. Ingressou no jornalismo aos 21 anos, em 1885, graças a uma carta em que ousava questionar a misoginia de um colunista famoso do Pittsburgh Dispatch. Em 1888, conseguiu uma chance no lendário New York World, justamente quando Pulitzer inaugurava a era de um jornalismo ao gosto da massa de leitores de baixa renda que chegavam à metrópole. Sem o patrocínio dos políticos, a imprensa apelava para sensacionalismo, crimes violentos e anormalidades. Por isso, os editores se interessaram pelos boatos sobre maus-tratos no hospício feminino e passaram a pauta para a jovem que, sem um tostão no bolso, estava disposta a encarar tudo.


Como a herança do pai foi dividida entre catorze filhos, aos seis anos de idade Bly herdou apenas alguns móveis, uma carroça, um cavalo, uma vaca e um cachorro. Como tantos que acreditaram no sonho americano, foi para Nova York em busca de trabalho e, se possível, fama e fortuna. Acabaria conquistando tudo isso e, ainda por cima, o coração de um milionário — mas não exatamente um príncipe encantado: quando casaram, ela tinha 31 anos e o industrial Robert Seaman, 73.


No entanto, ainda era uma pobretona sem dinheiro para o aluguel quando a primeira parte da reportagem sobre o hospício foi publicada, em 9 de outubro de 1887. Os detalhes da preparação são divertidos: Bly se fingiu de cubana, vestiu uma roupa velha, soltou a cabeleira e se hospedou em uma pensão barata. Passou a noite inteira vagando atrás de uma mala em que supostamente estariam suas roupas íntimas até a polícia ser chamada. Passou por uma delegacia, um juiz e quatro médicos antes de pisar no famigerado hospício. Na segunda parte da matéria, publicada uma semana depois, ela narra de forma emocionante os abusos, a comida estragada, o frio e as agressões físicas sofridas pelas internas. Longe de ser melodramática, Bly é uma cronista esperta, e seu texto não soa datado hoje. De olho em boas histórias e personagens, dá detalhes saborosos sobre a rotina do asilo. Reclama de não ter um espelho para se ver com a anágua horrível que lhe deram e revela a vontade de pular fora ao ver pela primeira vez uma louca em camisa de força. Também não lhe falta uma boa dose de crítica social, como se vê na passagem a seguir, em tradução de Carla Cardoso e Julio Silveira:


Nunca fiquei tão cansada quanto fui ficando naqueles bancos. Várias pacientes sentavam-se de lado ou colocavam um pé em cima do banco para mudar um pouco a posição, mas eram sempre repreendidas e instruídas a sentarem-se eretas. Se falavam, eram repreendidas e mandadas calar a boca; se queriam andar um pouco a fim de tirar a rigidez do corpo, mandavam que se sentassem e ficassem quietas. O que, com a exceção da tortura, levaria mais rapidamente à loucura do que esse tratamento? Aqui as mulheres eram enviadas para serem curadas. Eu gostaria que os médicos especialistas que estão me condenando pelo que fiz, o que só provou a habilidade deles, escolhessem uma mulher perfeitamente saudável, a fizessem calar a boca e sentar-se das seis da manhã às oito da noite em bancos sem encosto, não permitindo que ela falasse ou se movesse durante todo esse tempo; que a deixassem sem ler nada e que não ficasse sabendo nada do mundo ou do que acontece e dessem a ela comida ruim e tratamento ríspido; e então vissem em quanto tempo ela ficaria louca. Dois meses seriam suficientes para transformá-la em uma ruína mental e física.

Bly passou dez dias no hospício até um advogado do jornal liberá-la, e sua denúncia não foi em vão. Diante da pressão popular e de um júri designado para investigar o caso, a prefeitura de Nova York passou a destinar 1 milhão de dólares a mais por ano para o tratamento dos loucos. A comida melhorou, agasalhos foram doados e médicos e enfermeiras passaram a ser mais atenciosos. No entanto, quando a reportagem foi publicada em livro, Bly voltou à ilha para escrever um novo capítulo e encontrou algumas das companheiras em estado ainda pior. Hoje, o hospício está desativado, o local foi transformado em um bairro residencial e a ilha mudou de nome para Roosevelt Island.


Livre (e famosa), Bly continuou a procurar pautas bombásticas. Desmascarou o charlatão Ernest De Blanc, que prometia curar doentes com a teoria do magnetismo de Mesmer, e, personagem de si mesma, passou a assinar as reportagens em títulos apelativos: “Nellie Bly conta como é ser uma escrava branca”, “Nellie Bly por pouco escapa de ter suas amídalas amputadas”. Jornalista-celebridade, recebia centenas de cartas de leitores por semana, muitas com dicas de pauta.


Sua performance mais espetacular, no entanto, foi tomar para si o desafio do personagem Phileas Fogg, de Júlio Verne, e dar a volta ao mundo em menos de oitenta dias. “É um tanto difícil dizer exatamente o que fez nascer essa ideia. Ideias são o carro-chefe nos negócios jornalísticos, e em geral são o artigo mais escasso do mercado, mas elas vêm ocasionalmente”, revela na introdução de seu segundo livro mais famoso, fruto da viagem que começou em novembro de 1889 e durou 72 dias, 6 horas, 11 minutos e 14 segundos.


Recorde

A aventura rendeu ao World muito mais do que as duzentas libras investidas: o recorde absoluto de 280.340 exemplares vendidos. O jornal chegou a fazer um concurso: o leitor que acertasse em quantos dias Bly faria a volta ao mundo ganharia uma viagem para a Europa. A coisa tomou um vulto tão grande que a repórter foi recepcionada por multidões com bandeiras e fogos nas cidades onde fez escala. Voltou para Nova York ainda mais famosa, estampando anúncios de remédios e de chapéus. Até um jogo de tabuleiro inspirado na viagem foi lançado.


Bly conta, porém, que a princípio levou uma ducha fria de seu editor. “Em primeiro lugar, você é uma mulher e precisaria de um homem que a protegesse, e mesmo que fosse possível viajar sozinha, seria necessário carregar tanta bagagem que isso a impediria de fazer mudanças rápidas. Além disso, você não sabe falar outra língua a não ser inglês, então nem adianta discutir; para fazer isso é preciso ser homem”, teria dito ele. A ideia vingou depois de ela ameaçar vender a pauta para outro jornal. O martelo só seria batido um ano depois. “Você poderia dar a volta ao mundo depois de amanhã?”, provocou o chefe. “Posso começar neste minuto”, respondeu Nellie.

Após sua denúncia, foram destinados 1 milhão de dólares a mais por ano para o tratamento dos loucos

A primeira providência seria comprar um vestido que aguentasse uso constante por três meses, um casaco de inverno e uma maleta de mão, sua única companheira de viagem. Junto com o passaporte, os amigos sugeriram que levasse um revólver. Recusou. A única passagem que comprou foi de Nova York para Londres. O resto do itinerário resolveria pelo caminho. Uma vez na Europa, o jornal perguntou aos leitores se ela deveria ir para a Índia, a China ou o Japão. Mas a grande questão do público era quantas mudas de roupa levava na maleta de mão. As aventuras de Nellie Bly pelo mundo não devem nada à ficção de Verne, publicada dezesseis anos antes. Embora não falte etnocentrismo nos relatos (há uma implicância particular com os chineses), é tocante seu desejo de não se limitar aos pontos turísticos dos países por onde passou, visitando, por exemplo, uma deprimente vila de leprosos em Cantão.


Na volta, Bly deu um tempo no jornalismo. Publicou suas reportagens em livro, escreveu uma obra de ficção (que não fez nem de longe o mesmo sucesso) e casou-se com o milionário mais velho que, tomado de ciúme, mandou um detetive particular segui-la a uma convenção de sufragistas em Washington. Quando ele morreu, em 1904, deixou tudo para ela, mas as empresas faliram seis anos depois, devido a fraudes cometidas por conselheiros a quem a viúva confiou as finanças enquanto tentava melhorar as condições dos funcionários e desenvolver nada menos do que 25 novas patentes. Na época, era a única mulher a liderar uma indústria no país.


Não foi de todo ruim: pouco antes de morrer de pneumonia em 1922, a falência a obrigou a voltar a campo a tempo de marcar novamente seu nome. Trabalhando no front para Hearst, Nellie Bly foi reconhecida por muitos como a primeira mulher correspondente de guerra da história.




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