Felipe Galeno
Na segunda metade da década de 1990, as expectativas sobre o próximo trabalho do diretor Michael Mann eram grandes. Entre cinema e TV, Mann já tinha uma carreira estável e de relativo sucesso desde os anos 70. Mas foi com o lançamento do blockbuster Fogo Contra Fogo (Heat), em 1995, e seu enorme sucesso nas bilheterias, que o nome do cineasta entrou para as listas de "mais respeitados" em Hollywood. Deve ter sido, portanto, uma surpresa para o público da época o anúncio de que o novo filme do americano seria O Informante, uma história sobre os bastidores de uma entrevista na TV com um ex-executivo da indústria do tabaco. Seguir um grandioso longa de crime e ação (ainda que Heat fosse bem mais que isso) com um drama sobre as intrigas ocultas da imprensa televisiva não parecia a mais segura das apostas, mas foi o passo escolhido por Michael Mann em 1999. E o resultado é um dos mais instigantes retratos do ofício jornalístico no cinema.
(Al Pacino e Russell Crowe em cena do filme / Imagem: Reprodução)
A história real que cativou o cineasta e o levou a convidar o roteirista Eric Roth a escrever um script veio do artigo The Man Who Knew Too Much, escrito pela jornalista Marie Brenner para a revista Vanity Fair. A matéria destrinchava os bastidores de uma polêmica entrevista dada por Jeffrey Wigand, ex-vice-presidente da empresa de cigarros Brown & Williamson, ao programa jornalístico 60 Minutes. Wigand foi demitido da empresa após descobrir a manipulação química que a empresa fazia para aumentar o efeito viciante dos cigarros. Quando o produtor de TV Lowell Bergman descobre sua história, ambos entram em uma jornada para expor esses segredos publicamente na TV, enfrentando as pressões da corporação e da rede televisiva para que a entrevista não aconteça.
Não demora muito para que fique claro o porquê de o caso ter chamado a atenção de Mann. Assim como no já mencionado Fogo Contra Fogo, - e em boa parte de sua filmografia - a narrativa de The Insider (no original) é sobre vocação. O tema, recorrente na carreira do cineasta, pode até não ser o primeiro a vir à cabeça de quem lê a sinopse pela primeira vez. Mas fica evidente, conforme o roteiro se desenrola, que o longa é, acima de tudo, sobre o que move estes personagens a fazer o que fazem. A ênfase está toda no compromisso dessas pessoas com uma obrigação básica, um motivo anterior que impulsiona suas ações e, consequentemente, os leva a lutar pela tal entrevista.
O diferencial dessa história é que Mann faz um recorte bem contrastante entre o vocacional e o profissional, e centra nisso o seu conflito. Jeffrey Wigand (Russell Crowe) não se revolta com sua antiga empresa apenas por causa da postura enganadora por si só, mas sim porque esse comportamento deles vai em direção totalmente oposta à sua crença do que esse trabalho deveria ser. "Eu sempre me vi como um homem da ciência, é isso que está errado" diz o ex-executivo em uma cena. O drama do filme é o do homem que reconhece o que deveria ser sua missão de vida, mas é impedido de cumpri-la por conta da corrupção corporativa que domina sua profissão.
Nesse sentido, o arco do produtor Lowell Bergman (Al Pacino) é o mesmo, só que no cenário do jornalismo televisivo. Toda a luta pela realização e exibição da entrevista apesar das possíveis consequências revela muito do que o longa identifica ser o papel do jornalismo. A missão do jornalista em O Informante é a de ser íntegro. Seu papel é o de ser responsável pela verdade, guiado mais por uma espécie de valor moral do que pelas demandas de um empregador. Pelo contrário, no caso específico explorado pelo filme, a demanda e a missão têm posições antagônicas. Os esforços de Bergman persistem não por causa da emissora, mas apesar da emissora. Quando seus superiores questionam a exibição, Bergman segue em frente mesmo assim, porque acredita que expor a verdade é a parte mais importante do trabalho.
A partir disso, o filme de 1999 também reconhece muito bem o quão difícil é ser fiel à essa missão de honestidade. As implicações de ser íntegro na sociedade são a causa dos principais conflitos na narrativa do longa. "Quanto maior a verdade, maiores os danos", diz certo personagem em um determinado momento. O compromisso com a verdade é um risco diante de figuras de poder tão ameaçadoras, e é o medo desse risco que leva, por exemplo, a emissora a se posicionar contra a exposição das descobertas de Wigand publicamente. E, por mais que não os impeça de seguir em frente, essa pressão também pesa em cima de Wigand e Bergman, que lidam com essas implicações em suas vidas privadas. Desse conflito surgem os melhores momentos de Russell Crowe no filme. O grande trunfo de seu trabalho como o químico e ex-executivo está justamente na forma como encarna esse dilema: o constante desconforto em sua expressão, as sutis reações de nervosismo que revelam todo um mundo de emoções e insatisfações íntimas. Por mais que o ator tenha ganhado peso e esteja maquiado para parecer mais velho, o que exala cansaço em sua performance vai além desses truques. Está nos detalhes: os olhos exauridos, os dedos trêmulos, o andar pesado.
(O diretor Michael Mann com Pacino e Crowe no set de filmagens / Shutterstock)
Já o trabalho de Al Pacino na pele do produtor de TV e jornalista, apesar de tão forte quanto o de Crowe, é completamente diferente. O que se destaca no personagem não é o cansaço e sim o vigor. Pacino parece ter uma aptidão especial para esse tipo de personagem movido por impulsos enérgicos e coloca todo esse talento em cada um dos gritos e olhares de Bergman. O caso também o afeta internamente, como o desfecho tão bem reforça, mas em nenhum momento Pacino deixa que isso tome o lugar de destaque. Esse lugar ele reserva à determinação assertiva do personagem em deixar claro o que é verdade e o que é mentira, em garantir que ciclos de enganação não sejam perpetuados publicamente como verdade. Ele acredita no jornalismo, não da forma idealizada como outros filmes sobre o assunto parecem pregar, tampouco da maneira limitada e hipócrita que alguns profissionais (alguns de sua emissora) parecem viver a profissão. Ele acredita num jornalismo de verdade - que reconhece o fracasso institucional - e pela verdade - que persegue a honestidade acima de tudo.
E é por também acreditarem nisso que a direção de Mann e o texto de Roth conseguem construir um filme tão marcante. Investir milhões de dólares em orçamento e mais de duas horas e meia de duração em uma história cujos pontos de ação mais decisivos giram em torno de pessoas discutindo é quase tão arriscado em Hollywood quanto era para emissora CBS exibir a entrevista com Wigand. Mas os realizadores sabem do poder e da importância que essa mensagem tem, e por isso dedicam tanto à ela. E esse é o diferencial para tornar o filme não só uma engajante e intensa experiência cinematográfica, mas uma obra profundamente relevante mesmo duas décadas depois de seu lançamento.
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